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7 POEMAS DE "FAZ SOL MAS EU GRITO" - LEANDRO RODRIGUES

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Imagem: Gilad Benari


FAZ SOL, MAS EU GRITO

                                          Para Thiago de Mello

           I

fartas horas inúteis
em que tragédias são recicladas
e se moldam por entre sombras e gestos desprezíveis
molduras da tarde disforme

ela diz:
“que tempo estranho...”

Estendo as mãos ao vento
algumas gotas ácidas corroem o meu desprezo

Reinvento uns versos esquecidos e ancoro tantas embarcações
em lugar nenhum
Enquanto a nova empresa americana ergue suas cercas

Modulo o tom de voz para não gritar
Mas antes pudesse gritar.

          II

ruas imóveis sangram
como essa lua vermelha
que escorre 
entre os corpos desmedidos
estranhas estruturas de ossos
que sustentam ossos

aguda solidão 
d’água cavando
o sólido chão

intacta simetria
de cada grito
moldado ao sol.
  
          III


quartos, cômodos
corredores em espirais
bocas automatizam 
cruas faces/membranas
em cruzes 
sombras esquálidas 
de meninos esquecidos
nos porões
frios 
sem vista para o mar.


POEMA DE CINZA CHUMBO

                             I

O pai ousou gritar nos dias cinzas de chumbo
A mãe rodava panfletos num velho mimeógrafo estéril
Nada entendíamos
Cantávamos tristes canções entre os ciprestes e as sombras.

                            II

Os mortos insepultos são partes da paisagem
Estão ali nas escadas
Emparedados naquele mar
Seus gritos tangem o fosso - precipícios
enferrujados elevadores do centro,
desvalidas memórias amputadas.

                             III

Na vala comum desses dias - ossos de um país moribundo
Rescaldos de versos enlameados
No chão que é de poucos
No mausoléu de granito o ditador com honras apodrece
Comunga avenidas e praças de desatada sangria

                              IV

O pai tecia longos poemas sobre a revolução
A mãe espreitava as frestas do fim do mundo
Nada entendíamos
Dormíamos entre as lápides quebradas da tarde.


MENINAS DE MAIO

Na praça central,
À véspera do dia santo,
As meninas de maio se despem
de seus longos cabelos ao vento

Filhos desaparecidos são emaranhados laços de pontas disformes,
Rascunhos de cartas atiradas ao mar
sombras siamesas em quarentenas vivas
- velhas avós mudas que resguardam gritos em gavetas

Dos bordados finos,
Cordões umbilicais guardados que tracejam o choro dos arcanjos
O grito da besta-fera que tudo desfia, tudo
jogos da lua, chão quadriculado de precipícios
penhascos de sangue movediços qual setas de contramão
fardas estendidas no varal ao sol para secar as lágrimas.
   
                                  
MEMÓRIA

Tantas vozes mortas ainda escorrem
Nessa umidade fria da parede

Uns passos intactos / calados no chão
Destroçados qual vermes inaudíveis

Poças dormentes que rangem
engrenagens tísicas de porcelana

bromélias que murcham
com sangue nas cavidades
&
brotam nesses rios fétidos
Usinas de fetos e espasmos

Gritos/ lamentos das galerias
cavando domados silêncios

das horas turvas de um relógio de sol
calcinado pela escuridão.


GREVE

Depois da greve
Viraremos árvores

Simétricas árvores

a
b
s
o
l
u
t
a
s
  
nosso grito será o sol estampado nas folhas
nossas veias amplas raízes entrelaçadas
nos mortos
nossa mais rara espécie de orquídea
brotará do medo, a seiva da liberdade.


VITÓRIA-RÉGIA

A lua refletida no lago
Uma índia vem e com um dedo
                                    a conquista

Muito antes dos americanos.


MOLDURA

entre tantos silêncios empilhados
guardo o grito feito de pedra
encadernado em vistosas linhas

molduras disformes dos dias mais
torpes
em que ninguém se reconhece,

sombras frias nas galerias 
fétidas de esgoto

moscas pousadas na tarde
mesas bem postas
cama bem arrumada

ratos roem as noites
nos desvãos dos trilhos

nos beijos dos casais

no sorriso medido de boas intenções


extraído de "Faz sol mas eu grito" (Patuá, 2018).



Leandro Rodrigues (1976-    ).Nasceu em Osasco –SP. É Poeta e Professor de Literatura. Lançou em 2016 o seu 1º livro: Aprendizagem Cinza pela Editora Patuá. Em 2017 participou do Jornal de Literatura O Casulo e do livro Hiperconexões 3, Ed. Patuá. Mantém seus escritos no blog: nauseaconcreta.blogspot.com.br. Já publicou poemas em vários sites e revistas de literatura do Brasil, Portugal, Espanha e E.U.A.


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