Cinco poemas do livro "A serenidade do zero" (Penalux, 2017):
Para Raquel Naveira
Para Luiz Otávio Oliani
Para Igor Fagundes
Vida que se cala
Um choque paralisante
Um elétrico transe
de palavras açoitantes
O silêncio naufragou as letras tortas
Todas foram dançar num beco vazio
O maestro da música suave
toca a vida com as mãos
A vida se cala
após sons agressivos de sua voz
A borboleta saiu de seu casulo
e saudou o horizonte
o antes e o depois de mim
Não era hora para queixas
O silêncio se refez nas asas do pássaro
da primavera
O verão chegou, e o livro da mente pálida
se esvaziou de sentido, comeu
do sol a sua interrogação
Quantas palavras jogadas ao nada
só para fazer do outro o espelho da entrega
à vida, que não se perde em zigue-zagues
dos pássaros que se perdem no lodo
As mãos ofertam o segredo da palavra
Os olhos se fiam na espada do destino
Os vazios cospem fogo, este fogo
de outras eras, mais despidas que os mares e céus
A vida se escondeu na árvore dos mistérios
O amor se glorifica na vida que se cala.
Alfabeto transcendental
Um alfabeto que silencia a escrita
Que faz das letras um atalho para uma estrada esburacada
No meio da lama, encontro uma joia de medos
O medo insípido da humanidade
Em soletrar um alfabeto de cemitérios
Busco a transcendência das formas das letras
Suas sobrevidas, seus fantasmas
As palavras se inauguram na sua disformidade
Não na sua incumbência de levar a outro signo
Que não os signos das estrelas
As letras do alfabeto desencarnadas da vida
Não se fazem corpo de memórias
Mas batismo de espíritos translúcidos
Nas águas da unidade em meio a qualquer diferença enganosa
A comunhão dos signos
Se faz pela hóstia do silêncio
Que traduz o que a boca não vê
Transcendência de nomes
No papel mágico da vida.
Cápsula
Introdutório – como uma cápsula essencial
Introdução dos mitos, ele se detém na lanterna
O que convém à florescência que emerge
como arquitetura do mistério
A cor que se debruça
nos lábios dos dois seres
costura o artefato do milagre
não em deter-se na antevisão dos ritos
mas por si só soçobrar qualquer sombra de certezas
O animal que se esconde na moita
já está preparado para morrer
E nós jogamos o jogo da sorte?
Introduz-se no ser
a altaneira madrugada dos tecidos
Vértebras que se carcomem
na poeira dos lençóis
O homem-ser de pano
se extravasa de dores
Saem os suores do corpo
Os temores da sombra
se amotinam na cama
A cápsula da essência interior
é seu remédio mais preciso
mais vidente que o sol que folgueia
com as árvores em penitência
Introdutório – o sorriso do ser-homem
ultrapassa a sorte para se fazer destino
no entreabrir dos versos desta cápsula insana
que é o mundo.
Transe
Sou uma ilha de mistérios
rodeada por águas escaldantes
Na luminescência do grito grave
encontro-me com a essência do interior
Possuída por minha matéria escrita
derrubo muros de extrospecção
na candura de um lapso agudo
A violência do transe
é inaugurar espelhos de ouro
em que a vereda torta é um rasgo
na retidão das bordas
Transe de estimação, meu animal menor
no subterrâneo do coração vermelho
Possuída pela minha própria essência
traduzida em versos
jogo taças nas almas dos tempos trançados
Mas, oh, o transe
se alimenta de nadas nauseabundos
a cortar a dureza das letras mortas
Viva carne se liquefaz em páginas de águas
lacrimejantes palavras se desfazem em pó
solidificando a concretude do vazio
O transe, oh, casa de minha interioridade
morre em cada gota de sangue derramada
pelas letras mortais dos livros que escrevo
Transe, a agulha desfia cada página
da experiência vacilante do mundo
em que o dentro não se iguala ao fora
mas ambos se esvaziam de qualquer sentido.
Mandala
O corte afiado da lâmina
resgata mares antepassados
O coração é um feixe de telhas vermelhas
A casa se encontra vazia
Nas paredes do céu
encontro estrelas sagradas do ser
O adeus das primaveras
derrota os minutos de silêncio do florir
Os poemas se extasiam no vinho tinto
As letras douradas da vida
me deixam ver o sol além das nuvens cinza
A escada eleva meu vento interno
para uma estrada aberta de desejos
As pedras deixam sua dureza diária
para escorregarem no mel quente de seu peito
O olhar esconde ilhas de aconchego
A mágica das palavras cria mundos em miniatura
que tecem as bocas num tapete oriental
A mandala do segredo da madrugada
é perambular no labirinto de sua boca febril
em que os dedos acolhem os versos que eram neve
Os corpos se chocam na agitação dos anos
Após muitas lutas internas, o sol se enche de verbo
novamente, consolando os astros na sua mandala de luz
Seu ser se preenche de rosas na rotação dos planetas
Cavar fundo a cabala das emoções
faz você enxergar além das montanhas mais altas
A mandala interroga seu interior repleto de espinhos
E no centro do símbolo a única dor
é substituída pela sintonia do amar.
* * *
Alexandra Vieira de Almeidaé poeta, contista, cronista, resenhista e ensaísta. Tem Doutorado em Literatura Comparada (UERJ). Atualmente é professora na Secretaria de Estado de Educação (RJ) e tutora de ensino superior a distância (UFF). Tem poemas traduzidos para vários idiomas. Publicou cinco livros de poesia: "40 poemas", "Painel" (Multifoco, 2011), "Oferta" (Scortecci, 2014), "Dormindo no verbo" (Penalux, 2016) e "A serenidade do zero" (Penalux, 2017).