Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Blasfêmia - Demétrio Panarotto

$
0
0


I

aquilo que cerca
próximo
cria o confim
do nada com o depois da cerca
o perto o longe o que nos toma
pois quando o corpo tem medo de si
reflete histericamente
no pavor que sente pelo outro ali tão perto
repito e réptil

do lado de lá da cerca
é assombro
quando tudo 
rusgas fiapos e parcimônias


II

jesus e sua turma chegaram atirando No Puteiro. jesus, hein? tiroteio alarido não tiroteio alarido perguntaram tiroteio alarido e tiroteio alarido não tiroteio alarido disseram tiroteio alarido nada tiroteio alarido quando tiroteio alarido foram tiroteio alarido embora tiroteio alarido; setenta e oito corpos tombaram; funeral tiroteio alarido funeral funeral funeral; catarina, com os olhos furados pela matança e um crucifixo na mão, pronunciou-se: não basta ter cu, tem que colocar pra circular; depois da cova coletiva feita por uma escavadeira do poder público, parecia que o mundo havia deixado de fazer sentido; é sempre assim, disse catarina, deixa de fazer sentido, mas daí, mesmo que com atraso, bate a fome, a vontade de cagar, de mijar, de dormir, lá pelas tantas de foder, e logo logo tudo volta ao normal (ou assim parece); o normal é não fazer sentido, mesmo quando o almirante o general ou o professor gritam, sentido; o que sobrava, nisso que parece engodo, era o orgulho de rir quando não se entendia o fracasso de todas as horas; assim viviam os merdas que nasceram em berço esplêndido (e os que sonhavam fazer parte e que aliciavam seus sonhos na desgraça mundana) na cidade dos meios, dos médios, dos médiuns, dos medíocres, das mídias e dos discursos vazios e eternizados em altares de linguagens para a manutenção do poder; o corpo, naturalmente exposto, tombava no calor da própria ignorância; apodrecia dentro da cerca sempre pensando em matar um ou dois para colocar a cerca dois dedos pra lá, pra lá, sempre pra lá;



III

nem sei se pão ou piada
se calabaça ou calabouço
o que cala
na última ala
no corredor úmido
o que dá eco
no pedido de socorro
coro mas não corro
o coração dividido em dois
como uma fruta podre que caiu do pé

pela brecha do puteiro vejo a praça
e nela a polícia
que nos impede de brincar
quando acusa os bardos
de barbas longas
de cantar



VII

todo protocolo é machista
um reforço de autoridade
protolocar é assumir
a ordem
o progresso
é ficar fazendo carinho no pau do estado
em troca de algo
de sobra
de espelhos
pois quando se negocia
o ócio
não se faz
decoração
e o quadro é sítio


VIII

- parem de chacoalhar o caralho e a boceta no chaveirinho dos colunistas sociais. isso é uma deselegância, disse catarina ao narrador. os dois ficaram se olhando como se tivessem dúvidas em relação à sequência dos fatos. o narrador respondeu que esperava, por esperar, que elegância e ganância fossem apenas rimas soantes, ou toantes, tinha dúvida. quem sacode o saco junto sacode a pança, disse catarina. ao fundo um tripé demarca a ação da cena como se o fim e o começo coubessem dentro do mesmo espaço de escarros; a caixa de cuspe, ao lado, que se diferenciava da de escarro por causa da cor, permanecia vazia; daí surgiam os momentos mais insólitos, isso quando passava a impressão de que a diferença estava no cuspe e no escarro, momentos em que os presidentes das assembleias eram eleitos pela sua estupidez e apoiados pelo colunista social, que também farreava com as putas e com o dinheiro público, e que usava o espaço do jornal pra divulgar a sua própria festa; um curral com o cu dos outros, é claro; nada mal para um estado, disse catarina, acostumado a criar porcos e galinhas delimitando os espaços e anunciando o dia e a hora da mortandade; os números no painel eletrônico eram alarmantes, morte e vida das galinhas e patê de bicho morto nos canapés dos coquetéis das assembleias;


extraído de Blasfêmia (Butecanis Editora Cabloca).
Galeria: deviantART


Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, em 1969. É doutor em Literatura e professor universitário. Publicou, dentre outros, Ares- Condicionados [Nave, 2015], O assassinato seguido de La bodeguita [Butecanis Editora Cabocla, 2014]; “15'39”” [Editora da Casa, Alpendre 2010], Mas é isso, um acontecimento [Editora da Casa, 2008], mais alguns discos e alguns filmes. Vive em Florianópolis-SC.

Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Latest Images

Trending Articles