Os desertos e as fundações
Neste instante-fronteira transformarei a areia em deuses
Estes milhões de milhas de vulnerabilidade e ausência
Em deuses.
Circunavegarei após, com as arcas e os patriarcas,
Estas mil-e-uma mil-e-dunas braças
Esta esfera feérica
Esta Terra Incognita
Carregando nos alforjes a forjada fé
A forjada espada
E os ritos contritos de sílabas encantatórias
A atenuar a solidão extrema e trêmula deste deserto que
é viver.
Cartografia das defesas I
Ante a visão incabível dos desertos espaço aberto mar
| Opto pelos rios | pelas divisas | pelos muros |
Delimito fronteiras.
Acima de tudo, aceito-as.
Em lúcida estratégia de ouriço
Eriço meus espinhos contra o mundo
Aguço minha audição ante a sorrateira dicção dos
passos
Ante toda a tentativa de ceifarem minha carne
Contra a pura e autêntica exultação que se alimenta
do pisotear.
Não rompas o meu casulo.
Não interrompas minha clausura.
Analisa. Olha. Espia.
Meus espinhos – pois utensílio de bicho –
Farejam o sangue acobertado por tuas botas
E a ti só parecerão rudes e intoleráveis
Se carregares a intenção de me ferir.
As tempestades de areia
O deserto como um mar
(substrato: o sal universal: medula)
E o avolumar de suas ondas-dunas
E os vales lacunas entre outras dunas.
Oceano messiânico alastrando-se
invadindo
propagando
(propaganda)
Khamsin. Simum. Ghibli. Harmattan.
Legião tentacular endiabrada a esbravejar:
¡A-VAN-ÇAR. EIA!
¡ A-VAN-ÇAR. EIA!
¡A-VAN-ÇAR. EIA!
Tal qual o degelo dos blocos de matéria-outra
De matéria-areia
Expandisse e dilatasse suas beiras
margens
Para muito além de seus próprios limiares
orlas
Um Midas não-aurífero, arenífero
Tudo ferindo num ferino açoite ensandecido
Até que o globo circunscrito a uma-una camada tênue
Totalitária tessitura de clausura rasa
Cedesse enfim à ambição da abolição de todas as fronteiras
E instituída a tirania da saciedade
Em que tudo é deserto e nada foge:
Cárcere sem grades. Cânceres sem grades. Metástase
Os desertos e as víboras
Sob o desmedidamente solícito Sol
Sol solipso
Sol solerte
Mede-se em 75 graus a temperatura das areias.
*
Em distribuições equânimes de agonia
Quinhentas convulsas vértebras convertendo vertigens em
movimento e subversão
Neste ermo enorme
Nesta superssuperfície onde restolham e rastejam seres de dois
metros de comprimento
Comprimindo-se na amplidão e aturdimento desta vida
inclemente
Árdua
Desta vida sem adornos sem contornos sem retornos
Sem abstrações ou metafísica
Sem os misticismos da palavra vida
(Pois que os mecanismos da máquina de guerra que é a
linguagem aqui não agem)
Desta vida sem ódios rancores ou piedade
Mas apenas a vida dos botes e golpes e equimoses
Estrangulamentos e mordidas não mordazes
Peles a se crestar e a secretar segredos
Apenas a vida rastreadora e armamentista
A vida a instilar paralisias
A vida que está contida
(Embora não se contenha)
A vida que é ferida e vibra
Em cada microfibra dos músculos das víboras.
Cartografia das presenças III
Fixe
Seu corpo no meu corpo
Certifique-se
Que as cortinas estão fechadas
E fique.
Modifiquemos a ideia de que amor
(Essa coisa santificada
Falsificada por classificações)
E fiquemos aqui, com ele
Lubrificados
Sujos e purificados
Certificando-nos que deixá-lo ficar
É a única forma de identificá-lo.
Arzírio Cardosoé um poeta, escritor e professor paranaense. Autor dos livros de poesia Bromas & Bromélias e Cartógrafo de Dunas, ambos lançados pela Editora Penalux. Também tem poemas publicados na Agenda da Tribo, na Mallarmargens- revista de poesia e arte contemporânea e na Germina- Revista de Literatura e Arte.
Em 2017, foi o grande vencedor do Prêmio Escriba de Crônicas, concorrendo com outros 986 escritores. No II Concursoda Academia Ferroviária de Letras, do Rio de Janeiro, obteve a primeira colocação na categoria “aldravia” e a terceira colocação na categoria “crônica”.