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Por Trás do Véu - Homero Gomes

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Ilustração: Manuel


“Repousa o homem, na indiferença de seunão-saber, e como que pendente em sonhos sobre o dorso de um tigre.”

(Nietzsche, Sobre a Verdade e a Mentira no Sentido Extramoral)


Acordei no meio da noite enxergando tudo o que havia em meu quarto transmutado para a cor azul.
Esfreguei os olhos, bati no rosto, mas tudo permanecia nessa cor. Me levantei e fui ao banheiro e, sem acender a luz, lavei o rosto nervosamente.
Quando acendi a luz, acreditando que aquela alucinação teria fim, vi que meu reflexo no espelho estava todo azulado, como tudo ao redor.
Depois de horas nesse tormento, tinha a nítida impressão que até o ar que respirava era azul. O correto seria ligar para o trabalho, avisando que estava doente.
A manhã já começava. Deveria ser delírio. Não havia tomado nada na noite passada. Há muito tempo não usava drogas. Mas tinha medo de sair do quarto, do que poderia encontrar fora da minha caverna. Queria voltar a dormir.
Não foi difícil cair no sono novamente. Mas aquele não estava sendo um sono normal. Sentia vibrações por todos os lados e tinha consciência de que estava deitado em minha cama.
Não sonhava. Não havia nada. Mas estava imerso em um profundo e imenso branco.
Eu não estava conseguindo descansar, mas não conseguia mais despertar; estava aprisionado naquela dimensão onírica.Possuía a consciência de meu corpo, mas ele não respondia a meus comandos, aos meus desejos falhos.Conseguia sentir o frescor da manhã, mas estava imobilizado. Precisava tentar sair daquela cama, já que aquele sono não era sono.
Tentei imaginar meu dedo mindinho direito se movendo.Deveria começar por um pequeno membro; assim, seria mais fácil.Não sei contabilizar o tempo que passei nesse exercício de movimentação, ou libertação, mas não resisti por muito tempo. Estava desistindo.
Já estava aceitando minha situação quando involuntariamente meu dedinho esquerdo se moveu. Fiquei esperando meu corpo se mover novamente.Se isso acontecesse, eu tentaria manter o movimento com a mente para que aos poucos meu corpo se libertasse.
Pacientemente fiquei à espera de qualquer sinal, qualquer que fosse já seria o bastante.
Comecei sentindo um formigamento na unha do indicador, até que se transformou em dor. Todo o meu braço esquerdo latejava.
Lentamente consegui mover os dedos, o antebraço; até que todo o meu braço se movimentava com facilidade.
Aos poucos, com bastante dificuldade, esses movimentos dolorosos foram para peito, ventre, braço direito e cabeça. Até que passei a conseguir me movimentar da cintura para cima.
Com minhas pernas foi mais difícil, porém eu já conseguia me manter sentado, massageando minhas coxas. Esperava ansioso o formigamento começar.
O que esperava veio com muita intensidade, travei meu maxilar devido à dor cortante. Tentei gritar, mas voz alguma saía.Descobria outro problema.
Silêncio e dor excruciante apenas.
Me esforçava para que meus dedos se movessem, meus joelhos, alguma coisa. Sentia como se minha perna estivesse sendo eletrocutada.Uma corrente elétrica muito intensa as percorria, elas tremiam.
Fui conseguindo dar pequenos chutes, até que se movessem para fora da cama.Sabia que naquele estado seria muito difícil me manter em pé; principalmente estando imerso naquele branco profundo. Mas eu precisava tentar.
Me coloquei de lado e firmei os pés no chão, deixando meus músculos doloridos tensionados. Num brusco movimento,me botei de pé.
Cambaleante, consegui ver todos os meus móveis com suas cores e texturas originais. O delírio cromático havia terminado.
Ao lado da minha cama estavam minha mãe, meus familiares e uns poucos colegas de trabalho. Em cima dela, estava meu corpo frio e pálido, com algodões nas narinas.
Eu vestia um terno escuro de lã.


Conto publicado pela primeira vez há 8 anos, no jornal Vaia, de Porto Alegre



HOMERO GOMES (Curitiba/PR, 1978) é autor de Sísifo Desatento (contos), publicado em 2014 pela editora Terracota – finalista do Sesc de Literatura – e Solidão de Caronte (poemas), publicado em 2013 pela editora Patuá – primeiro colocado no Prêmio Poetizar o Mundo. Publica regularmente em periódicos eletrônicos e impressos, tais como Cândido, Mallarmargens, Rascunho, Nego Dito, Cult, Germina Literatura, RelevO, Escritoras Suicidas, Reversos, Cronópios, Ficções e Zunái. Publicou as narrativas-crônicas de um personagem ficcional em www.jamevu.tumblr.com. Foi colunista dos sites Página Cultural, Musa Rara e da revista Samizdat. Teve poemas publicados nas antologias Fantasma Civil, da Bienal Internacional de Curitiba, em 2013, 101 Poetas Paranaenses, da Biblioteca Pública do Paraná, em 2014, organizada por Ademir Demarchi, e 29 de Abril: o Verso da Violência, em 2015, publicada pela Editora Patuá.

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