ode ao caos
vim, vi e não venci.
olhei o relógio e não
parei.
vi as luzes dos faróis
no reflexo de seus óculos,
mas não parei.
perdi seu toque terno
e ávido por prazer que,
em meio ao caos,
me mata!
ode ao caos
no cotidiano de nós mesmos.
ode a nós
em nosso ser caótico.
não quero mais seu
toque terno e suave.
quero seu fel, seu ódio,
seu medo, seu desejo.
quero seu corpo aberto,
seu peito arfante
em estertores.
o resumo do caos em seus
olhos abertos sem vida,
que perscrutam
o
insondável.
insondável som do fel,
felácio sem seu sinal.
sinal subjugado de seu
arsenal
suave e sonoro.
bebe de minhas entranhas,
de minhas vísceras
o caos de nossos corpos.
o caos que domina
a pena
que
nega
e
mata o
poema.
o caos com seu corpo
liso em seu fim,
em sua forma
canhestra e casta,
deturpa o que fica
à sombra
como o anjo torto de
drummond.
não sai e não volta,
dama do caos.
não volta.
bestiário I
vejo três lágrimas
na taça de vinho.
duas pra mim
e outra pra você.
o tiro que ecoa no
meio da praça
atravessa e extravasa
a cabeça do notívago.
cai o corpo.
ergue a poeira
que esconde o sereno
noturno durante a serenata senil.
a urbe revolta em revoada
se esconde sob a marquise
do edifício tijucas
e pede mais ...
urbe revolta que pede e
chora, se espalha pela
boca que maldiz
quem por ali passa.
horda de crucificados
perdida no caos urbano.
o peso da cruz
não vale seu sacrifício.
queime-a enquanto
é tempo.
não fique ao relento
esperando o perdão.
seu senhor lhe absolve,
lhe promete salvação.
olhe
no
espelho.
a lágrima secou!
fim do bestiário I
bestiário II
quando abro a porta
não me encontro.
vejo o vão
do vulto que não existe.
seu espectro se apodera
do discurso alheio,
envolto às bestas
da urbe moderna.
quando abro a porta
penso ver seu rosto
lúgubre e sereno
que chora sua perda.
sua perda no inverno
da província
que louva a criança
morta na esquina.
sua voz não sai da
garganta cortada pelo punhal infame.
o sangue escorre pelo chão,
o sêmen escorre pela mão.
o urro do homem moderno
é surdo. a cor do homem moderno é cinza,
e ele caminha estático.
quando abro a porta
da rua vejo o vão
de sua filosofia vã,
poeta da voz aldeã.
poeta sob prescrição médica.
lorax garganta abaixo,
caixão terra adentro.
alma da mãe que busca seu rebento.
quando quebro o espelho
me parto em fragmentos.
corto o que dá liga,
certo que dá rima.
um vulto na história
que esbraveja uma notícia.
furioso em sua morte,
perdido em sua vida.
fim do bestiário II
bestiário III
quero encher com versos de sangue
a brancura do papel.
quero gritar para
deus?
você só existe no papel.
quero que me mate
e morra em seguida
para que na descida
você
arranque
o véu.
quero que veja o que vejo,
que beba o vinho, que negue o céu.
quero que suje as mãos,
que exorte a alma
de seu crucificado incréu.
aplauda o bobo,
alerte o insone
de que você já morreu.
quero que você me leve
para o lado
do perdedor,
pois lá a perspectiva
é distinta, é distante
e não cabe em um único
livro da estante.
quero que você se perca
em um idioma que já morreu.
me prenda em suas
pernas
em seu leito
com
morfeu!
quero seus lábios abertos
com seu toque de
ternura.
vermelhos como sangue.
me
devore
na
sua
loucura.
fim do bestiário III
v
você atira tudo que encontra em mim.
vaso,copo,cuspe,coisas,versos,
rimas,métricas,regras,vulva,
vassalos,caralhos,bonecos,cigarros,
baseados,garrafas,garotos,um jogo inteiro de
baralhos,uma lança,um lance,uma louca,um
louco,um par de alianças que encontra,seu sapato
de dança que alcança a janela do vizinho que grita
vendo o espetáculo do seu corpo aberto quando me
fecho de volta pra dentro de ti.
Ilustração: Hugo Fernandes
Daniel Osiecki nasceu em Curitiba em 1983. Professor e escritor, publicou os livros de contos Abismo (2009) e Sob o signo da noite (2016). Fellis, seu primeiro volume de poesia, está no prelo. É mestrando em Teoria Literária. Publica resenhas e crítica literária no Jornal Relevo e mantém o blog Távola Redonda (WWW.poesiatavolaredonda.blogspot.com).