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Ilustração: Farnoush |
[...] um estreitamento no peito: a vida.
C. L.
Tão perto de nada e conseguiu se perder. Clara não pensou nessas ruas ou lembrou de armadilhas, passos falsos e do perigo restrito a cada uma que pensa poder ser. Culpada de esquecer o conselho da mãe, não pôde muito com seus resultados. Nunca abandonar, não, uma panela no fogo.
Perto à hora do jantar, enxaqueca surgiu após o sono da tarde. O segredo da mistura é pertinente nos seus ânimos. Quase seis horas, Lucinha precisa ser pega na escola. Antes de tudo, Clara precisava escolher dois ou três ovos para pôr na panela. Soltar cada qual que afunda e emerge. Ovos crus fingem boiar. Acendeu o fogo baixo e pôs a panela para poder sair.
Na rua o vento feio fez voltar. É sempre necessário um casaco. Dois, outro para a filha. Elegeu quaisquer dois, encostou o portão. Soube de um atraso porque as vizinhas eram ouvidas em companhias. Acelerou o passo. Algumas a cumprimentaram: deu sorriso e aceno.
― Clara, o perfume chegou. Quer levar? – Carmelita apontou em uma janela verde, olhava com bom jeito.
― Depois pego, Dona Carmelita. Atrasada para buscar Lucinha!
Preparou-se para dobrar a esquina. A padaria fervilhava, os bons pães estavam por chegar. Clara precipitou uma olhadela pelo seu interior. Das almas conhecidas, nenhuma querida. À escola se chegava algumas quadras a frente. O mulheril se dissipava, o céu já era roxo. No único farol do bairro parou, fazia sinal fechado. Carros com gente, visões tristes. Quase um minuto, atravessou.
― Tia, a Lucinha está doente?
O menino moreno de franja lisa a tapar os cílios a surpreendeu. Vinha acompanhado da vó e estava parado a sua frente.
― Não, não está.
A vó do menino sorria, não sabia da conversa.
― Ela faltou hoje? Não vi ela não.
― Não viu?
O ventre de Clara borboleteou. Em meio segundo esqueceu onde estava, apressa que a seguia. O menino devia mentir, era sim um mentiroso, desses danados a enganar. Resolveu perder o assunto, abandonou o menino e a velha sem resposta. As ruas resolveram serpentear e os buracos das calçadas mal feitas despojaram saudações.
A escola estava quase toda vazia. Um inspetor, duas ou três crianças, poucas luzes acesas, cheiro de partida.
― Boa tarde, seu Guilherme. – buscava Lucinha nas faces das crianças. Eu vim buscar Maria Lúcia.
― Boa tarde, Dona Clara – o homem se fazia estranho. Eu não vi a Lucinha por aqui hoje.
― Não?
O homem negou mesmo habitando em seu peito um traço de piedade para aquela mãe. Se pudesse mentia. Entregaria uma calúnia que sabia, requentaria um coração. Não pôde, era justo demais. Clara agradeceu, desceu a escada vazia e nos portões da escola qualquer vertigem lhe passou. Cegou por duas ou três minúsculas horas. Olhou a rua, quem passava e o mistério de Lucinha. Planejou seguir até qualquer casa das amigas da filha, saber de alguma coisa. Percebeu-se burra e desajeitada. Outras pessoas lhe cruzaram dando sorrisos. Acordou lembrando os ovos.
Pegou o caminho de volta. Mirava o horizonte longe e hostil. Os braços cruzados abaixo dos seios, um vento eriçava os pelos da perna e a calma da culpa chegava. É assim a beirada do inferno, deduziu. Perto da padaria encarou a fila. Três ou quatro pessoas até sua vez. O pão estava bonito: redondo e amarelo. Pouca casca, nada queimado. Levou cinco. Pegou leite e queijo também. Pagou com uma nota só. Contou o troco meticulosamente. Saiu para o frio. Tinha noite. A casa da Carmelita era convidante, deixou-se entrar, pagou o perfume e escolheu outros cremes. Aceitou um café. Ofereceu o pão que tinha e comeram juntas. Saudaram a felicidade do lar, os benefícios das saladas e o cheiro de amaciante. Deixou Carmelita e, outra vez na calçada, teve dúvida para onde ir. Lembrou os ovos outra vez. A água fervia com fúrias. Logo mais os ovos estourariam e deixariam as gemas e claras disformes e sólidas.
Seguiu, seguiu, seguiu e foi.
Encostou novamente o portão, despencou com as coisas no chão. O choro veio livre e voraz: dono de cortar alma e estilhaçar a consciência. Clara queria se livrar das idiotices da sua ignorância. Como era fria! Como era inóspita! Que jeito de servir! Larga as peles, rasgar o avental e tirar os calços das cadeiras! O mundo não girava. A dor do engano fechava a garganta. Soluços, soluços, soluços. Não sabia os caminhos de volta. O relógio trai ao responder as horas. É cedo demais para pensar. Ela queria uma caixa de vidro para entrar e repousar. Ser só. Só ser. Aprofundar no vácuo da atmosfera e esboçar um qualquer viver. Insignificâncias bem-vindas. Era linda, era bela, tinha idade. Uma filha só.
― Oi, mãe!
Lucinha bateu o portão, o pai vinha atrás. A menina abraçou Clara e lhe entregou um dente. Depois um beijo e o diário do dia:
― Os médicos falaram que eu estou muito bem. Deram parabéns ao papai e a você!
Clara olhou a menina que sorria bem. Ela tinha vida, existia, estava ali. Bochechas rosadas e uma cara feita a sua. A cara de quem vê, sabe e depois desconfia. Abraça mas, ama. O marido sorriu e perguntou o que ela fazia ali sentada com sacola de pão e loja.
O que ela fazia?
Clara respondeu silêncio.
Até que voltou aos ovos. Despediu-se dos dois. Entrou para desligar o fogão. Nenhum ovo boiava na água.