Enterrado no quintal
Guardei por mais de 15 anos um revólver enterrado no quintal. Guardei ao lado de um pé de limoeiro. Um 38 doado por um amigo de infância que já puxou umas 6 cadeias por tráfico e assaltos. Tinha guardada essa arma para resguardar a vida da minha mãe. Cresci vendo caras batendo nela. Socos, gritos e som de louças quebrando foi a trilha sonora da minha vida por muito tempo. Eu era moleque quando entrei uma vez em casa e a vi jogada na cozinha. Tinha 12 ou 13 anos. Sangue saindo pela boca junto com os olhos fechados de tanta porrada. Fui crescendo com a promessa que mataria esse cara. O tempo passou. Veio internet, redes sociais e descobri onde o cara se escondia com mulher e filhos. Em 2011 fiquei puto com a vida e botei o revolver na mochila e fui atrás dele no município de Parintins. Nunca consegui desfazer esse engasgo na garganta. Esse nó por não ter conseguido defender a minha mãe. Sou um cara muito direto. Honesto. Os poucos amigos que me conhecem sabem que sou amor ou ódio para valer. Paguei três dias de hotel e encontrei a casa do filho da puta. A máquina carregada na cintura e muita maldade para descontar no peito e na cara dele. Queria ver ele babando nos meus pés. Escutar o som dos tiros. Queria ouvi-lo pedindo desculpas. Perdão. Até hoje minha mãe não escuta do lado direito e a sobrancelha direita é torta por conta da surra que ele deu nela. Enfim, bati na porta da casa dele e uma mulher veio segurando a mão de um guri com o nariz cheio de catarro e a cabeça cheia de piolhos. Perguntei algumas coisas e ela respondeu que o pai tinha morrido afogado. Que tinha enchido a cara de cachaça e virado numa canoa. Acabou meu dinheiro e voltei pra Manaus desconfiado do papo dela. Cavei outro buraco ao lado do limoeiro e guardei o revolver dentro de uma caixa. Guardei na esperança que ele aparecesse um dia para conhecer de perto meu rancor vermelho de exu tranca rua. Durante muito tempo imaginei diversas formas de matá-lo. A imagem da minha mãe jogada no chão me feriu para valer. Atravessou minha adolescência de forma cinza. Queria fazer justiça com as minhas próprias mãos. Acho que a imagem dela jogada no chão influenciou negativamente nos meus estudos. Nunca consegui decorar tabuada ou aprender regras de gramática. Sou meio disléxico e sofro de depressão. O choro dela na poça de sangue ainda me incomoda. Hoje sonhei com ele pedindo perdão no fundo do rio. O rosto comido por peixes. Cadavérico. Então tomei café, desenterrei a arma e joguei na reserva florestal que tem no bairro. Acho que consegui perdoar o cara ou tenho me aproximado de Deus. Joguei o velho revolver e me sinto mais leve. Estou esperando minha mãe chegar do médico para abraçá-la com força. Nunca contei essa parada para ninguém, mas já é passado. O arrependimento é um milagre. Vou esquecer tudo e escrever um poema para ele. Vou dizer que não sinto mais nada e que ele ache a luz do outro lado da vida.
Leblon
Alguém fala que algo está errado no conto. Que o verbo está mal conjugado. Que por isso deram poucas curtidas. Que uma boa gramática está em promoção numa livraria do shopping da gávea. Que o flamengo empatou com a ajuda do juiz. Que a minha ex casou com o deputado que come criancinhas e superfatura com viadutos com nomes de poetas que ninguém leu. A verdade tatuada num braço carregando uma geladeira para a biqueira. O pó que o vizinho cheira só amarga mais a minha tristeza e nem é domingo. Dicas de limpeza de pele num vídeo do facebook e o que mais desejo é limpar a alma de remorsos de naufrágios com cheiro de boceta e cu. Ninguém merece esse salmo 91 engasgando na garganta ou esse Cioran com pinta de indefeso pregado na porta do meu quarto ainda no reboco e sem ventilador. “Ela gosta de você” “Quem? ” “A Larissa gosta muito de você” “Ela gosta da minha literatura. As pessoas confundem as coisas. Ninguém me atura mais de duas semanas. Nem eu mesmo” “Ela está disposta a deixar o marido para ficar contigo” “Não quero ficar com ninguém. Quero ficar sozinho olhando para minha própria depressão de pau mole vendo Discovery Channel. Já percebeu que os bichos são melhores que a gente?” e dois carros se batem no sinal da Avenida Recife. O trânsito fica lento. Fecho o uatiszap e continuo baforando meu derby achando que estou no Leblon e não peso feito um peixe boi em Manaus. Tem dias que as coisas chiam feito discos de sambas antigos. Tem que dias que estou mais para Cartola e outros para Paulinho da Viola. Não entendem. Pensam que minha dor é feita de plástico. Que meu sofrimento é autoficção. Ela ama minha dor de longe. De perto vira ódio. Larissa precisa ler Clarice ou só me deixar em paz.
O sapo e a princesa
Crianças brincam do outro lado da rua com um sapo. A mais gordinha da quadrilha bota óculos azul nele. O sapo incha. Parece gostar da brincadeira ou apenas se defender. Uns velhos bêbados do meu lado começam a dar risadas. Estou no bar. Uns compartilham toques de mãos e palmadas nas costas. O riso cresce tanto quanto o sapo e eu olho para as tampas no chão. Tampas de cervejas que bebi o dia inteiro e penso na minha infância. Lembro da época que apanhava do meu avô e ia para rua desenhar castelos com giz no asfalto. Desenhava até caminhões tombarem na rodovia. Recordo da Francisca. A menina mais bonita da minha rua. Do primeiro calor que senti no peito e no beijo com gosto de algodão doce que dei no parquinho de roda gigante enferrujada do bairro de baixo. Jogam o sapo para o alto. Carros buzinam. Ele parece uma bola verde brilhando no sol. As crianças não param. Pulam e gritam como se a vida fosse um brinquedo inquebrável da estrela. Eu paro de olhar para o chão e saco os velhinhos contando piadas sem graça sobre times de futebol. Por dentro de mim um sapo tenta beijar uma princesa que se esvai. Nunca consegui zerar super mario e salvar a princesa do castelo. Acho que faz parte de mim perder e não realizar as coisas. Sempre fui mestre na arte de decepcionar. Deve ser por isso que a Francisca namorou o Baiano. Ele zerava tudo. Desde jogos do atari, mega drive e super Nintendo. Estão juntos até hoje. Tempo desses um escritor consagrado me disse em Paraty que a literatura e o amor são um jogo. Não concordei. Inventei que estava com dor de cabeça e voltei para hotel. Nunca fui campeão em nada e já estou velho demais para ganhar medalhas de honra ao mérito. O sapo rebola e bate no para-brisa de um taxi e resvala para perto da sarjeta do bar onde estou pensando em desistir da vida. Acho que foi Cioran quem disse que todo suicídio é em legitima defesa. Não tenho como me defender mais. Sou um anfíbio sangrando na lama. Acho que a gente tem que saber sair de cena. Jogar a toalha não é pena. Talvez reconhecimento da derrota. Seguro o sapo dando os últimos suspiros e saio buscando um resquício de mato. De floresta. De terra. Até um sapo merece um descanso digno. As crianças param de rir. Os velhos cochicham. Não acho uma arvore. Vejo um bueiro e jogo o bicho com cuidado. Sinto vontade de me jogar também. Super Mario entrava em bueiros atrás do castelo da princesa. Desisti de amores e princesas. Bosta gosta de bosta e o melhor lugar para mim é o bueiro.
***
Nada a oferecer
Não tenho nada a oferecer
Só um peito carregado de sonetos metralhados na curva da desilusão
Não precisa pedir perdão por nada
Eu vou ficar pior
Teus olhos verdes continuarão a brilhar no feriado de Corpus Christi
Eu sei que devia ter tocado a tua mão quando a protagonista de La La Land deixa o jazzista para fazer cinema em Paris
Os sentimentos são mutáveis
Não precisa pedir perdão por nada
O Rio Negro seca para mostrar barcos naufragados em bancos de areia
O broche da vivara enegreceu
Amanhã vendo meus livros no sebo e compro um buquê que não te dei de aniversário
Não tenho nada a oferecer
Nem mesmo o meu sexo sujo aos sábados antes de tocar a vinheta do supercine
Não posso implorar que me abrace no temporal
Eu vou ficar pior com as minhas ilusões de ganhar o mundo com a minha literatura que não surpreende mais ninguém
Desculpa pelo fracasso de não saber te beijar
Novos dias frios virão sem teu corpo branco contrastando com o pôster dos Beatles pregado na parede do teu quarto
Sei que fui um constrangimento
Uma vergonha fenomenal de escola de samba deixando um vácuo entre as alas de peixes e o casal de mestre-sala e porta-bandeira
Vou vestir a camiseta com vestígios do teu cheiro de anjo caído do paraíso e chorar baixinho
Não precisa pedir perdão por nada
Nem todos os contos de amor terminam com corações subindo ao céu
Vou me calar
Tenho que engolir teu sorriso
E você já me esqueceu
É hora de abrir a janela e esperar uma nova dor
Agora não sei para quem dedicar o romance da minha vida
Acho que vou conversar com o mendigo que me salvou do suicídio
Não precisa pedir perdão por nada
Eu sou uma ofensa e você uma palavra bonita enfeitando um cartão-postal.
Morna
Agora deita
Olha para o teto
O meu silêncio é maior que tudo
Agora deita e liga para suas amigas que falam de intercambio no Canadá e Austrália
O meu desprezo cura até câncer
Olha para as nuvens carregadas pesando por cima do telhado do vizinho que fez da oficina mecânica um laboratório de drogas
Agora salva as coisas que escrevi para você no auge do meu desespero
Antes do block
Antes das fotos excluídas do instagram e dos boletos de eletroeletrônicos que compramos pensando na casa nova
Vai chover
O tumor no útero velho e desgastado da minha mãe irá secar porque ontem escrevi algo bonito enquanto dormias sonhando com o macho alfa do corpo de bombeiros
Alguém sempre se afoga no mar ou na banheira
Agora levanta
Escuta o barulho da porta batendo
Sou eu dando as costas para cidade e levantando a poeira
Finge que não valeu a pena
Que não foi bom as vezes que enfiei minha língua na tua boceta grande e viscosa
Que não pensou em largar tudo e viver uma aventura em outro lugar
Que não pensou em nadar sem pensar em tubarões
Que não doeu das vezes que nos despedimos em barezinhos patéticos do shopping center
Que nossos abraços não foram apertados e quentes feito cu de freiras
Botei aquela música no celular.
A música que escutávamos enquanto tuas lágrimas mornas escorriam pelo meu peito
Agora abra a janela
Veja o temporal balançando as arvores do parque mindú
Admita pelo menos uma vez que quis deixar raízes comigo nessa vida ingrata e mesquinha de falsos amigos e blasfêmias religiosas passando de madrugada na tevê
Alguém sempre se afoga enchendo o tanque do próprio veneno
Ontem sonhei com os dois
Deus e o diabo se amam
Um permite o outro
Ainda pensamos na gente
Nada acabou
Neste exato momento desenho teu sorriso numa cartolina amarela
Desenho só para parar de chover.
John Frusciante
Vi aquela entrevista em que o John Frusciante tá igual a um zumbi possuído pelas drogas
Ele diz nesta mesma entrevista que escreve canções desde os 9 anos e não liga pra mais nada
Só para as canções que escreve
Que não se importa com mais ninguém
Gosto muito de John Frusciante
Gosto das músicas dele
Gosto da maneira como ele brinca com a morte e de sua capacidade de ressurreição de fênix
Já mergulhei no inferno muitas vezes antes de conhecer o brilho dos teus olhos verdes
Ontem a gente acabou no exato momento em que escutava o álbum “the Will to death”
Caminhões tombaram no meu peito e a fumaça do cigarro ficou preta como de chaminés
Sempre acaba por falta de dinheiro
Por falta de comprometimento e responsabilidade da minha parte
Talvez não ame ninguém
Acho que nunca amei
Nem a mim mesmo ou a primeira namorada controladora de trafego aéreo do aeroporto de congonhas
Talvez ame cadernos de capas coloridas e poemas que escrevi com canetas bic vermelha
Sonhos e tragédias que poderiam virar canções de John Frusciante
Acabou, mas vejo teus olhos verdes brilhando em toda parte
Não sei quando abraçarei alguém novamente
Ando sem vontade de viver faz algum tempo
Meu pau não tem levantado nem para punhetas
Tudo era verde contigo
Agora até o sol tem ficado negro
Talvez seja a hora de dormir sem sonhar com nada
Estou cansado
Não quero mais ter que se lembrar do lindo brilho dos teus olhos como se fosse deus me espiando de uma brecha de casa de madeira.
Galeria: Brassai