SOBRE BRINCAR COM FOGO
NÃO MAIS EXISTIMOS
estamos livres vejam como estamos livres
como dançamos e este sol fedendo nos rostos
e a cal que resseca o úmido das feridas
nada importa nada além da grossa respiração
dentro da chuva da noite somos livres
como dançamos e este sol fedendo nos rostos
e a cal que resseca o úmido das feridas
nada importa nada além da grossa respiração
dentro da chuva da noite somos livres
estamos livres vejam como amornam as línguas
como se incendeiam as cortinas nas tocas
estamos livres e rimos entre bolos e copos
como somos fortes e nossas camisas ensaboadas
falamos baixinho flutuando num círculo
como se incendeiam as cortinas nas tocas
estamos livres e rimos entre bolos e copos
como somos fortes e nossas camisas ensaboadas
falamos baixinho flutuando num círculo
como somos fortes entre suspiros e empurrões
o ar que sonegamos e as mãos nas botas
gorgolejamos a nossa vigília nos quintais
refloresceremos cativos que ladram delicadezas
estamos livres como faunos pisando uvas
o ar que sonegamos e as mãos nas botas
gorgolejamos a nossa vigília nos quintais
refloresceremos cativos que ladram delicadezas
estamos livres como faunos pisando uvas
estamos livres vejam como estamos livres
aprenderemos a soberba e a colheita dos vegetais
não morreremos aqui na fulguração dos poemas
os hibiscos ferverão sobre os livros desarrumados
pelas paredes gritaremos nossas paixões e euforias
aprenderemos a soberba e a colheita dos vegetais
não morreremos aqui na fulguração dos poemas
os hibiscos ferverão sobre os livros desarrumados
pelas paredes gritaremos nossas paixões e euforias
O HOJE
tenho cinco remédios para tomar
um para reprimir a liberdade
um para libertar a ansiedade
outro para conter a esperança
aquele para curar a sexualidade
outro para acordar as sete em ponto
um para reprimir a liberdade
um para libertar a ansiedade
outro para conter a esperança
aquele para curar a sexualidade
outro para acordar as sete em ponto
dos cinco remédios que tomo
diariamente e na hora marcada
apenas um deles cumpre o efeito
dois me causam dependência
sem aquele fico em abstinência
o outro paralisa metade da metade
diariamente e na hora marcada
apenas um deles cumpre o efeito
dois me causam dependência
sem aquele fico em abstinência
o outro paralisa metade da metade
se houvesse um remédio
um único remédio que fosse
que valesse por quatro remédios
dos cinco que tomo em jejum
sobraria apenas um
e eu tomaria por todos os dias
um único remédio que fosse
que valesse por quatro remédios
dos cinco que tomo em jejum
sobraria apenas um
e eu tomaria por todos os dias
mas um dos remédios é líquido
e outro remédio é sólido
o terceiro remédio é gasoso
o quarto remédio é elétrico
o quinto remédio é psíquico
e outro remédio é sólido
o terceiro remédio é gasoso
o quarto remédio é elétrico
o quinto remédio é psíquico
o remédio líquido me espanta
o remédio sólido causa dor
o terceiro remédio me sufoca
o quarto remédio me humaniza
o quinto amarga na boca
o remédio sólido causa dor
o terceiro remédio me sufoca
o quarto remédio me humaniza
o quinto amarga na boca
ANÍBAL
os lírios do campo não te perdoam
a mais suave pétala corta teus dedos
o sol e o pó acumulam em teus olhos
insuflando a cegueira em tua felicidade
e a voz que alimenta o bicho de dentro
encontra os teus ossos e o teu pulso
a mais suave pétala corta teus dedos
o sol e o pó acumulam em teus olhos
insuflando a cegueira em tua felicidade
e a voz que alimenta o bicho de dentro
encontra os teus ossos e o teu pulso
DE PERTO E DE LONGE
algumas pessoas serão
marcadas
a ferro
marcadas
a ferro
outras pelo roçar do corpo
numa parte mais íntima
numa parte mais íntima
aquelas de outra época
pela cura medicamentosa
o choque elétrico
o afogamento induzido
pela cura medicamentosa
o choque elétrico
o afogamento induzido
o vício o vício
no fundo todos seremos
marcados pelo vício
por uma vontade que antecede
a vontade que é mais
que vontade
no fundo todos seremos
marcados pelo vício
por uma vontade que antecede
a vontade que é mais
que vontade
pela temperatura que ativa a
circulação e faz transpirar
até o limite
circulação e faz transpirar
até o limite
pela intenção de compensar
o lado mais curto
do corpo
o lado mais curto
do corpo
pelo desejo de não desejar
nada além daquilo
nada além daquilo
pelo odor que incomoda e faz eclodir
a cicatriz que ninguém
toca
a cicatriz que ninguém
toca
INSÍDIA
aqui batem com os pés e batem com as pálpebras
se for febre o limite do dia e a cidade suja
se lançarem no ar toda sorte de epidemias
e amarrarem teu coração no crime de alguém
responde como se estivesse num filme
amputa da ilusão a nascente
dos lavatórios
se for febre o limite do dia e a cidade suja
se lançarem no ar toda sorte de epidemias
e amarrarem teu coração no crime de alguém
responde como se estivesse num filme
amputa da ilusão a nascente
dos lavatórios
pela última vez
todos os órgãos do corpo logo irão anoitecer
alguns lençóis rasgados e sujos de mijo
algumas pessoas se levantarão contra o paraíso
outras se deixarão possuir pelo medo de perder juízos
responde como se estivesse num filme
domestica os corredores dos braços
todos os órgãos do corpo logo irão anoitecer
alguns lençóis rasgados e sujos de mijo
algumas pessoas se levantarão contra o paraíso
outras se deixarão possuir pelo medo de perder juízos
responde como se estivesse num filme
domestica os corredores dos braços
IN DULCI IUBILO
cuidado com certos insetos que não voam
pensam na salsugem e na meteorologia
o peso da areia sobre seus ovos em cápsulas
improvisam um abdômen vivo e cintilando
escrevem paixão onde é precária a língua
a praia é extensa no cenário de seus crimes
escrevem paixão com caneta e lápis dentro
pensam na salsugem e na meteorologia
o peso da areia sobre seus ovos em cápsulas
improvisam um abdômen vivo e cintilando
escrevem paixão onde é precária a língua
a praia é extensa no cenário de seus crimes
escrevem paixão com caneta e lápis dentro
cuidado com certos insetos que não dormem
debruçam-se num fogo entre a boca e a garganta
trituram a hortelã até a tristeza perder o nome
nomeiam o gozo pelo frêmito do músculo
paixão transmitida em eco de vão em vão
paixão sendo impelida a ópio e creme:
é pornográfico cobrir certas partes do rosto
debruçam-se num fogo entre a boca e a garganta
trituram a hortelã até a tristeza perder o nome
nomeiam o gozo pelo frêmito do músculo
paixão transmitida em eco de vão em vão
paixão sendo impelida a ópio e creme:
é pornográfico cobrir certas partes do rosto
GARREL
!ahgarrel eu esqueci de avisar de um filme francês
que não sei se conseguirei ver
a comida esfria na mesa e até agora
não conheci o paraíso
se você olhar bem verá que algumas flores
ainda não murcharam
que não sei se conseguirei ver
a comida esfria na mesa e até agora
não conheci o paraíso
se você olhar bem verá que algumas flores
ainda não murcharam
!ahgarrel eu perdi aquele 1 mil reais de empréstimo
e rezo para não me iludir muito em paris
e é preciso evitar certas músicas e vícios
e um plano de voo que dure
um dia
e rezo para não me iludir muito em paris
e é preciso evitar certas músicas e vícios
e um plano de voo que dure
um dia
!ahgarrel segurei com firmeza cada página
para não dobrar as pontas
sei que alguns cortes valerão um fim de jogo
estaremos porosos e com os rostos
nas paredes
para não dobrar as pontas
sei que alguns cortes valerão um fim de jogo
estaremos porosos e com os rostos
nas paredes
!ahgarrel você dormiu com um objeto de luz na boca
quanta humildade se fingíssemos
com o corpo e com os olhos
entenderíamos tudo de desertos
e nada de alvenarias
quanta humildade se fingíssemos
com o corpo e com os olhos
entenderíamos tudo de desertos
e nada de alvenarias
!ahgarrel alguém sobreviveu
à queima de um fogo entre os dedos
e o receio de um sangue que furtei
quanta humildade se fingíssemos sonhos
e um pássaro saltaria
do cesto
à queima de um fogo entre os dedos
e o receio de um sangue que furtei
quanta humildade se fingíssemos sonhos
e um pássaro saltaria
do cesto
VENDER FUMAÇA
teimo que existe uma condição: conceber
a matéria até a matéria perder qualquer forma
a matéria como estrutura e parte do que lhe é dado
ser fervura e ranço enquanto se perde o perfume
e a haste que enrijece na reflexão das quedas
conceber a matéria por força de um poder sem fé
a matéria até a matéria perder qualquer forma
a matéria como estrutura e parte do que lhe é dado
ser fervura e ranço enquanto se perde o perfume
e a haste que enrijece na reflexão das quedas
conceber a matéria por força de um poder sem fé
COM O DEDO MÍNIMO
eu quando nasci a casa estava limpa muito limpa
eu dominava a deusa e a deusa me dominava
eu todo de pelúcia e o dedo no bastão de abraão
eu ocioso nesta guerra entre a peste e a falsidade
e sendo parte de um frio à prova de ereção nas partes
eu como uma rainha de face roída pelas traças
eu que adoro o veneno e nomeio as direções do dilúvio
o azulejo que vibra o navegante bolinando suas fronhas
a escuta que enrosca e espionando os sentidos
eu incorporo o ácido como uma ausência ou um jogo
alastro pela morada a oração e a poeira da rua vizinha
conheço dessa torre somente as duras cabeçadas
tenho saudades do caminho por onde fujo e assovio
canja de pé de galinha canja para os enfermados
canja para os doentes que não batem bem do juízo
canja para os poetas que só escrevem em pontiagudos
quando eu nasci a casa estava limpa muito limpa
foi num beco escuro ao lado de um chafariz sujo
eu com vestido de menina e a boca movida a chinelada
eu rendido pela fechadura da porta do armário
e milênios de vida ainda em grãos para não brotar
e enxadas como cantadeiras pacificando as terras
e eu a operária de rugas molhadas e joelhos no chão
eu a pequenina publicando textos de morte e solavanco
eu o fluxo e a brasa num emaranhado de cobras
eu e a casa limpa muito limpa e a eclosão dos insetos
eu e o perigo quando os telhados pulam do lombo dos ratos
eu dominava a deusa e a deusa me dominava
eu todo de pelúcia e o dedo no bastão de abraão
eu ocioso nesta guerra entre a peste e a falsidade
e sendo parte de um frio à prova de ereção nas partes
eu como uma rainha de face roída pelas traças
eu que adoro o veneno e nomeio as direções do dilúvio
o azulejo que vibra o navegante bolinando suas fronhas
a escuta que enrosca e espionando os sentidos
eu incorporo o ácido como uma ausência ou um jogo
alastro pela morada a oração e a poeira da rua vizinha
conheço dessa torre somente as duras cabeçadas
tenho saudades do caminho por onde fujo e assovio
canja de pé de galinha canja para os enfermados
canja para os doentes que não batem bem do juízo
canja para os poetas que só escrevem em pontiagudos
quando eu nasci a casa estava limpa muito limpa
foi num beco escuro ao lado de um chafariz sujo
eu com vestido de menina e a boca movida a chinelada
eu rendido pela fechadura da porta do armário
e milênios de vida ainda em grãos para não brotar
e enxadas como cantadeiras pacificando as terras
e eu a operária de rugas molhadas e joelhos no chão
eu a pequenina publicando textos de morte e solavanco
eu o fluxo e a brasa num emaranhado de cobras
eu e a casa limpa muito limpa e a eclosão dos insetos
eu e o perigo quando os telhados pulam do lombo dos ratos
ISCA
cobrir o que se deve mostrar
mostrar o que se deve cobrir:
é exercício de uma vida inteira
mostrar o que se deve cobrir:
é exercício de uma vida inteira
FLAMMA FUMO EST PROXUMA
dizem que você tem apenas uma chance
e não deve olhar para frente ou para trás
que o seu corpo é como um sal nas calçadas
que a febre só passará depois do lodo e da cal
que os seus amores foram saqueados no trato
e não deve olhar para frente ou para trás
que o seu corpo é como um sal nas calçadas
que a febre só passará depois do lodo e da cal
que os seus amores foram saqueados no trato
dizem que você não pode lavar os cabelos
virilhas assim tão limpas não valem o que pagam
que você é um prejuízo de cor e premeditado
que esse beijo é carne fresca no frigir da língua
é hora de agradar a deus sem ranger os dentes
virilhas assim tão limpas não valem o que pagam
que você é um prejuízo de cor e premeditado
que esse beijo é carne fresca no frigir da língua
é hora de agradar a deus sem ranger os dentes
dizem que o poema é tormenta na viagem
e a insônia perfeita é fecundadora de sexo
que a sua cara oleosa é visão de cio e golpe
se preciso for dorme entre pulgas e carrapatos
e amanhece com hálito de adolescente na cara
e a insônia perfeita é fecundadora de sexo
que a sua cara oleosa é visão de cio e golpe
se preciso for dorme entre pulgas e carrapatos
e amanhece com hálito de adolescente na cara
apesar de tudo você é este pó nos rochedos
acima de tudo é dejeto alimentando um fogo
a ilusão quebrará o gosto do leite com limão
é hora de fugir da noite pelo fio das bainhas
afrouxar os dedos numa escrita de areia
acima de tudo é dejeto alimentando um fogo
a ilusão quebrará o gosto do leite com limão
é hora de fugir da noite pelo fio das bainhas
afrouxar os dedos numa escrita de areia
INFECTA
entre tantas coisas genitais
numa festa de pregas desenhadas em ruas retas
escolhi o dedo e os miseráveis sentidos de tocar
o ferro o pano manchado no sangue tocar o éter
de não precisar amaciar a tarde uma cama tralhas
nesses resmungos um sapo-borrão
recitará cabral
numa festa de pregas desenhadas em ruas retas
escolhi o dedo e os miseráveis sentidos de tocar
o ferro o pano manchado no sangue tocar o éter
de não precisar amaciar a tarde uma cama tralhas
nesses resmungos um sapo-borrão
recitará cabral
aqui sobre a terra carcomendo a teia
de uma pornografia bem-vinda de um inferno
no calor regenera o abscesso regeneram as cuias
na poesia infecta na poeirenta tarde os casmurros
bebericarão em dedadas
de uma pornografia bem-vinda de um inferno
no calor regenera o abscesso regeneram as cuias
na poesia infecta na poeirenta tarde os casmurros
bebericarão em dedadas
e de tudo as porcelanas são a invenção mais impura
incorporam nossas rezas nossa sabedoria régia
um templo de tapados cheirando essa fumaça na lata
garimpando se ainda existir vida uma lombriga
repelirá estes dias de amores cine grafando
um beijo na boca
incorporam nossas rezas nossa sabedoria régia
um templo de tapados cheirando essa fumaça na lata
garimpando se ainda existir vida uma lombriga
repelirá estes dias de amores cine grafando
um beijo na boca
MORDER A FLAUTA
(com o pensamento em Sophia Andresen)
os vivos me visitam de vez em quando
para eles tenho sempre a mesa pronta
contemplo o mar de suas entranhas
burlo o peso de uma raiz ou da manhã
devagar pergunto o nome e a direção
alguns ocupam o espaço de um animal
e outros são videntes à sombra de abner
para eles tenho sempre a mesa pronta
contemplo o mar de suas entranhas
burlo o peso de uma raiz ou da manhã
devagar pergunto o nome e a direção
alguns ocupam o espaço de um animal
e outros são videntes à sombra de abner
é invisível a ferida de cada vivo
esculpem numa cadeira o abandono
e estão comigo como peixes numa rasga
meus ombros afrontam pássaros e bicos
é princípio de estação e voltam acordados
fazem barulho quando pisam em folhagens
esculpem numa cadeira o abandono
e estão comigo como peixes numa rasga
meus ombros afrontam pássaros e bicos
é princípio de estação e voltam acordados
fazem barulho quando pisam em folhagens
respiro o perfume que eles entornam
os vivos não cansam de dizer adeus
é um sopro que dança e a asa no rosto
é festa para mastigar sal e unha roída
é beber o vinagre enquanto se governa
os vivos não cansam de dizer adeus
é um sopro que dança e a asa no rosto
é festa para mastigar sal e unha roída
é beber o vinagre enquanto se governa
não trazem promessas nas bocas:
para eles mantenho o banheiro limpo
não desligo as tomadas não apago as luzes
e cada pedra é um olhar ou palácio
em cada cama a exatidão de um gozo
os vivos não cansam de abrir a porta
para eles mantenho o banheiro limpo
não desligo as tomadas não apago as luzes
e cada pedra é um olhar ou palácio
em cada cama a exatidão de um gozo
os vivos não cansam de abrir a porta
ARTIFÍCIO
este poema quero espremer todos os dias
quero riscar nos postes com carvão molhado
quero vítima de incêndio perfume sem número
quero altura para literalmente ser sua varanda
quero inflamar vidraças contra tintas e metais
um operário acidentado num bombardeamento
um aquário genital com cinco peixes de gesso
poema aliciado pelo fósforo faminto de papel
quero riscar nos postes com carvão molhado
quero vítima de incêndio perfume sem número
quero altura para literalmente ser sua varanda
quero inflamar vidraças contra tintas e metais
um operário acidentado num bombardeamento
um aquário genital com cinco peixes de gesso
poema aliciado pelo fósforo faminto de papel
Fotos: Fabiano Lima
Flavio Caamaña é um trabalhador braçal nascido em Tamboril, desertão do Ceará. Vivenciou o auge da ditadura, a infâmia e a injustiça. No início dos anos noventa participou como voluntário em campanhas de apoio às vítimas da Aids. Primeiro lugar no XVI Prêmio Literário Ideal Clube De Literatura, participou de coletâneas em livros e revistas literárias virtuais. É autor do livro de poemas Aquedutos (PATUÁ, 2016).