epifania
uma fúria suave de buganvílias oferecendo-se às calçadas
por entre as grades das casas pelas tardes de inverno
buganvílias de ramos arqueados e retos
e passa a menina enamorada
e o rapaz lhe põe um cacho no cabelo
passa outra menina e se fotografa ao lado delas
os meninos as levam ao pique-bandeira:
bandeira branca, lilás, salmão, alaranjada...
do alto a garça crepuscular, visão binocular
branca branca branca
da paisagem se alimenta.
tardes de inverno
por que logo hoje para fora das grades
esse único e reto ramo de buganvília vermelha
uma espada ensanguentada
que acabou de sair do meu peito?
mergulho
a barba da cor das estrelas...
plumagem de garças.
boia de luz.
peixe-anjo,
jogado muitas vezes contra as pedras,
agudas pedras,
cada fio branco assinalado
foi um verso que nasceu.
a poesia feita de mergulhos.
esmaltada em meu peito
minha ave não olímpica
navega por escombros.
a morte do Zé do Norte
a Ferreira Gullar
(in memoriam)
contratorpedeiro Zé do Norte,
bico fino,
desejo agudo pelos mares,
já não pode ser contra nada...
de capitânia a rebocado
a caminho do desmanche,
perdeu o manche,
da montanha a avalanche,
desmoronou sobre ti
garças negras, africanas,
águas de Durban.
mar, cama líquida e azul,
noites de erguimentos e quedas,
de nas estrelas cadentes
encharcar-se de abismos
e a vida com seus Zés:
Zé da Rita
Zé da Preta
Zé do pão
no final serão da morte,
todos a caminho do desmanche,
a morte quer seu lanche,
a despedida é lilás.
águas de Alang
quanto sang!
Zé do Norte mudou de nação,
de número, de nome,
mudará de forma,
disforme,
Zé da Morte;
cortaram cabos de reboque
e se foi com a tempestade,
com seus postos de combate,
virou posto de abandono;
seus paióis de enfermaria,
onde fui encarregado,
um lugar apropriado
ao marujo mareado;
meu primeiro navio afundou
e em harmonia afundei
de servidor federal
para estadual,
hoje municipal,
trabalhador braçal
da prefeitura de Meriti;
mas se afundaram o navio
e o homem de guerra,
emergiu o poeta.
seu destino, como as aves,
era entrelaçar-se ao vento;
sua metralhadora antiaérea
era inveja de passarinhos.
vento forte Zé do Norte!
a mercadoria não chegou,
menos sangue em Alang,
afundei, afundamos,
deixamos juntos
a altivez das ondas,
afundei em todos os navios,
vim aos ares com todos os poemas
como a proa que retorna do abismo.
agora
o girassol se desmancha em outros benefícios,
nos tubos-almas dos canhões
deslizam peixes, não metais.
eu, passei de menos para mais...
quem dera essa imagem
fosse aqui na superfície.
garça rio flamboyant
I
as garças têm a leveza de uma hóstia.
chegam voando pela mão do dia
e pousam na língua negra do rio.
II
do rio que se fez pecador pela humanidade
aguentando a sujeira dos homens...
III
a flor do vinho é o vermelho flamboyant.
IV
completa a comunhão venho revelar:
sou sacerdote de hóstias não consagradas
ainda no hostiário.
ontem vi uma hóstia pousada no flamboyant.
píer Mauá
ao índio e avô João Severino
e às gêmeas Thaís e Laís Bôto
píer Mauá...
cargueiros pesados de adjetivos
cavaleirados por baleias.
ondas puxavam de uma perna.
nem sempre mar de almirante...
há o mar do cabo, do soldado, do sargento,
do civil, do aprendiz,
vários mares e um mar que eu nunca quis;
que empurra meus destroços para o cais...
mar em mar
a garganta escangalhada canta e vomita,
um mareado vomita,
um poeta como um dragão deságua fogo...
gêmeas verdadeiras,
meninas brincavam sem rede,
primitiva era a linha riscada no chão...
sintaticamente branca,
lenta, lenta, lenta,
voava a peteca com penas de garça,
pousava onde não queria, se sujava,
poesia sem área definida,
não diz o que queremos, recebemos,
devolvemos garças sem alvores parnasos,
iradas ou mesmo tristes ou em silêncio,
um rio não fica vazio,
garças-da-lua, garças-da-noite, garças-das-trevas,
negros véus, olhos vermelhos,
oscilantes entre o nojo e a cereja...
arremessada a grandes alturas, arqueava,
tocava estrelas,
caía, às vezes, sobre a Linha do Equador,
nos abusos da invernia,
nas crianças rebaixadas
ao limite do humano,
esse disco de tecido do que fora teu vestido
quando a gente se estranhou, hostilidades de pardais.
balanços do mar,
a peteca em vaivém,
recheada com epifanias,
de Herodes para Pilatos,
era a palavra golpeada
pelo poeta e pensador.
triagem
Rio de Janeiro,
muitas de tuas casas
foi meu avô quem fez;
muitas de tuas casas
foi meu pai quem fez;
muitas de tuas casas
foi meu irmão quem fez
e chegou a minha vez...
mas vieram certas garças separando
da marreta, do ponteiro e me dando
uma peneira toda azul e desde então
passo a noite peneirando estrelas,
mesmo as estrelas têm de ser peneiradas.
Cais do Valongo
a Camila Beatriz e Patrícia Souza
píer Mauá, transatlânticos...
espias infinitas se espalhando
como longas raízes sobre o cais...
são cordões umbilicais, terra-mãe;
e como crescem nos portos os navios,
e como somem no azul encrespamento das ondas...
de barriga minha mãe ia ao cais
ver desembarcar esperanças...
forrava a mesa com água
para não esquecermos o mar...
a fralda com leite embebida ao limite
envolvia-me o nariz
para não sentir a frieza da distância,
enquanto lavava o lar.
passava vez por outra pelo berço
e ficava seu rosto como uma boia luminosa,
acendendo e apagando,
sonora nos frequentes nevoeiros sobre nós...
a mesa de abas rebatíveis,
presas por dobradiças colocadas por meu pai,
quando soube por meu avô índio e cego,
está chegando um menino de naufrágio desdobrável,
a primeira roupa dele tem de ser branca,
passa nela linha verde,
vem nascendo um caçador...
pai e mãe analfabetos,
à mesa feijão, arroz e cotovelos,
tinha às vezes dominó,
a sensação de fracasso,
mas quando nasci
a mesa perdia seus fins utilitários,
mesa branca, pernas pretas,
pernas finas de uma garça,
quatro pernas pela casa,
bater de asas até soltar parafusos.
minha mãe...
sílaba forte da família.
minha mãe anunciando cangas no cais:
nine dólar! nine dólar!
a norte-americana segurava o marido,
minha mãe bonita,
só pagava five dólar.
no ventre eu já ouvia as espumas do profundo,
as conchas numa lata ritmadas por crianças,
o remígio das aves, suas vozes roufenhas,
as pancadas das espias se partindo,
as gírias dos marujos assustados.
fui marujo...
estive a escovar os ventos e as garças,
garças contra as correntezas,
algumas numa perna só;
refúgio na Gamboa, Camerinos,
Becco João Ignácio, Tia Ciata,
Largo São Francisco da Prainha,
um viva a Marinha,
difuso pela zona portuária.
minha feijoada enfrentou Pedras de Sal
e o curso da FEMAR,
mergulhei na Urca e Praça Mauá,
conheci negros com nomes,
sobrenomes de almirantes,
palavras sombreadas pela mágoa.
hoje venho ao cais,
um outro cais,
a verdade no abismo:
ao cais do Valongo
vieram ditongos
que foram separados...
sim... venho ao cais umedecido
deteriorar a raiva,
esse nervo atrabiliário,
somente à tua espera boia verde,
luminosa sobre a água escurecida,
balizando rumo, insegura poesia,
acendendo e apagando...
sim... venho lembrar minha mãe de barriga,
de teta ensolarada,
da segurança do cordão umbilical,
essa espia que se partiu
e fui entregue às tempestades,
a esse mar que me pergunta
e nunca sei responder.
outonar
a Sarinha Freitas e Edison Ferreira
ventanias de muito longe
desabam casas e faróis...
caem folhas do outono;
folhas de zinco;
ninhos
e
garças.
caem homens nas calçadas,
sobre os morros
e
nas praças.
impossível.
mil caírem ao meu lado,
dez mil à minha direita
e eu não ser atingido.
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Lasana Lukata é poeta e escritor nascido em São João de Meriti, 14 de março de 1964, Dia Nacional da Poesia, na antiga Estrada de Minas; oriundo de família de pedreiros, foi marinheiro de um navio contratorpedeiro que afundou nas águas de Durban a caminho da Índia ao ser rebocado para desmanche. (D37 Contratorpedeiro Rio Grande do Norte). Coincidentemente, a vida de Lukata também afundou, de servidor federal caiu para estadual, hoje é servidor público da Prefeitura de São João do Meriti como trabalhador braçal, mas se afundaram o navio e o homem de guerra, emergiu o poeta, participando da Oficina Literária ministrada pelo poeta Ferreira Gullar em 2001, na UERJ, resultando na Antologia Poética “Próximas Palavras”; cursando Literaturas Portuguesa e Africanas de Língua Portuguesa, UFRJ.