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A POÉTICA DE FLORISVALDO MATTOS (POEMAS INÉDITOS E PUBLICADOS)

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http://naturalbeauties-brazil-ibicoarabahia.blogspot.com.br/

(poemas inéditos) 





DE BEM COM A PECUÁRIA

No caminho da serra estava eu; eu,
Mirando ao longe os altos verdejantes.
À noite ali verdejam pirilampos;
De tão doce, embaixo, a água é quase mel.

Levei tempos ali, pensando grande
Em torto plantar de sonho e ilusão.
Alguém para e me diz: “Não seja insano!
Satanás só franqueia a contramão”.

Tapei ouvidos, olhos fechei, fui
Em frente, a deslumbrar-me pelos pastos,
No vão fosforescer de um sol vacum,
Mais deslumbrado quanto mais sonhava.

E me perdia após, na noite vária,
Encantado com a palavra Pecuária.

(2017)





ENTRE MAR E FLORA

Procuro-te; não sei por onde andas
(Se no tempo dos bondes, saberia).
Miro o mar, a rua jamais vazia.
Distrais-te com sóis; outras varandas
De luz acolhem o teu corpo claro.
Moves-te entre nuvens de carinhos.
Tu pisas e arrebentas os espinhos,
E a flora não te deixa em desamparo.
Tensos lábios em boca, como bordas
De um rio, de ti escorrem suavidades.
Entre ginástica e excentricidades,
Os pássaros acordam, quando acordas.

No teu encalço, a tarde toda turva,
Compraz-me te mirar, de curva em curva.

(2017)





COM A ALMA DA RUAS

As ruas de Água Preta começavam
Onde se perde a minha solidão.
Era no Apertucho que me esperavam
As alegrias de meu coração.
A Ruy Barbosa era uma rua enorme,
Que consumia o meu sonhar ligeiro,
Deixando para trás a do Cruzeiro,
A ouvir o som de uma canção que dorme.
Que irei fazer na Rua do Comércio,
Entre burros de cargas e tropeiros,
De calça nova, inutilmente, a ver se
O que me diz a lábia dos caixeiros
Não vale nada do que eu guardo mais
Do campinho lá da Rua do Gás?

(2017)





A DESCOBERTA DO MAR

                            Não, não íamos à praia.
                            (...)
                            Pois é, também não víamos o mar
                            E as lagoas não compensavam.
                                               (Ruy Espinheira Filho)

Eu também não via o mar.
Via o ribeirão e o brejo.
Vi depois um manso rio,
Onde aprendi a nadar.
Sonhava noites a fio.
No fundo havia o desejo
De sair e ver o mar.

Foi graças ao trem-de-ferro,
Que um dia parou na praça,
Com intenção de me lançar
Por um caminho sem erro,
E me levou para o mar.
Até me dava de graça
O contrário de um desterro.

Falam mais alto o meu sonho
E toda a minha alegria,
Com gosto de navegar.
Levei um susto medonho,
Tamanho mesmo do mar;
Com cores de epifania,
Era maior que o meu sonho.

Meu pai levou-me a um bar,
Que não comporta miçanga
(Ardente nome: Vesúvio!),
Um éden diante do mar.
Corre pelo ar um eflúvio,
Traço um sorvete de manga,
Satisfaz-me o bom-mirar.

Vastidão de azul e verde,
A se perder no horizonte,
No rastro de branca espuma!
Quanta alegria em se ver
De longe o quanto se esfuma,
Qual doce correr de fonte!
Na vida quanto se perde...

Um dia escrevi louronda,
Palavra de amor concreto,
Em folha depois sumida,
Na esteira de doida onda.
Uma lição para a vida:
Hoje sei em que dialeto
Um dia escrevi louronda.

Água, terra, fogo e ar,
Trouxe ao menino a ciência,
E muito mais. Quando busco
Uma rima para mar,
Seja aurora ou lusco-fusco,
Cá me diz a experiência:
Não há melhor do que bar.

(2016)





ENQUANTO A NOITE VAI-SE

Pelo sol da manhã, muitos me viram;
Da terra, pelo sal, outros me acharam.
É sempre belo o dia, quando lírios
Tiveram chão e luz e não murcharam.
Já um dia foste noite de meu bem;
Nem por isso fiquei embaraçado.
Pior foi quando vi, ali e além,
O nada que restou de meu passado.
Noite, por que te vás? Quero-te perto
Do pouco que de mim ficou na estrada.
Em tudo que me foi pranto e deserto,
Não me verás chorar água passada.
         Um deus passou correndo na clareira.
         Não vi, porque dormi a noite inteira.

(2016)





SEM AS CORDAS DE AÇO
                            Para Durval Burgos

Trêmulas folhas a cantar modinhas,
Que ele anotava para o seu violão;
Seja de flores ou de ervas daninhas,
É assim que se compõe uma canção;
Ou da água venha no sabor da espuma,
Ou de um demônio de pernas roliças;
Vencendo o mar, que acende o sol na bruma,
Seja o começo de infindáveis liças;
Beijando a pedra que sobrou da tarde,
O mar revolto já se foi embora.
A jornada de sons pela noite arde,
Tantas notas armou com vento e flora.
         Na esperança de outra manhã mais doce,
         Dedilha a pedra qual se cordas fosse.

(2016)





ECOS DE MIM MESMO

De tanto ler compêndios de arte vária,
Um dia pensei que a Morte é que me acalma.
Esta literatura funerária
Me fez perder os dias de minha alma.

Saio e abro então as portas do outro mundo,
Pondo-me entre deserto e mar bravio.
Quando me torna à terra o mar profundo,
Soa dentro de mim um sol de estio.

Glacial sempre, em seus pormenores duros,
O tempo me fizera cauteloso,
Ausentando de mim os meus futuros.

Se vezes me senti pouco operoso,
Entre nuvens passei, tomei o visto:
Tenho nome, sou gente; enfim, existo.

(2016)





SINTÁTICO VERÃO TRAVESSO

Calmo, um dia empenhei-me em ler o mar.
O mar me rogava que não o lesse.
As ondas eram para mim palavras;
As espumas, sílabas sobre a areia.
Mirava o céu, as aves confirmavam,
Pelo próprio som que elas imitavam.
O mar ardia e me recriminava,
E me mandou que consultasse os peixes.
Lá fui, e mergulhei por entre rochas.
A um que passava de fulgente escama
Instei se o mar, de tarde ou de manhã,
Não escondia um cabedal de histórias.
         Manda-me o peixe que regresse à areia.
         Lá, estirada, me aguarda uma sereia.

(2016)






http://www.ibicoara-chapada-diamantina.com/

(po
emas publicados)





A CABRA

Talvez um lírio. Máquina de alvura
sonora ao sopro neutro dos olvidos.
Perco-te. Cabra que és já me tortura
guardar-te, olhos pascendo-me vencidos.

Máquina e jarro. Luar contraditório
sobre lajedo o casco azul polindo,
dominas suave clima em promontório;
cabra: o capim ao sonho preferindo.

Sulca-me perdurando nos ouvidos,
laborado em marfim – luz e presença
de reinos pastoris antes servidos –

teu pelo residência da ternura
onde fulguras na manhã suspensa:
flor animal, sonora arquitetura.

(1965)





GALOPE AMARELO
                  
Quando ele voltou
a moça do portão estava casada
o prefeito era uma cruz e uma placa
as aves mudaram de itinerário
como os ônibus
o irmão mais moço tomava ópio
para esquecer.

Quando ele voltou
o empregado da esquina respondera
a um processo
onde perdeu a esperança e os dedos
o pai fuzilara um estudante
a mãe fugira com um mascate.

Quando ele partiu
a primavera galopava nos rosais
os campos de begônia floresciam
o gado esturrava nos currais
a terra desafiada vicejava como
uma égua na véspera do galope.

Quando ele partiu
o alimento dos olhos era verdura
de paisagem além da cerca
as goiabas enchiam os cestos
as mulheres voltavam com os meninos
os velhos falavam de assombração
a lua espreitava o pátio e o quintal.

Quando ele voltou
o ministro citava o arquiteto
com a pretensão de restaurar
o tempo à revelia dos relógios
o  muro substituía o horizonte
autoridades sonolentas distribuíam
o passaporte dos homens para o sanatório.

Quando ele voltou
as leis se haviam tornado ainda mais fósseis
as oligarquias muito mais poderosas
os poderosos mais astutos
o ministro lembrava “a pá sob os escombros”
o menino relia as manchetes da guerra
os preconceitos rimavam com a economia.

Quando ele voltou
havia uma encruzilhada e um alto-falante
a moça do portão estava casada
o irmão caçula era um soldado velho.

Quando ele partiu
a primavera galopava nos rosais.
Quando ele voltou
O céu era só um galope amarelo.

(1975)





À MODA DE CAMÕES VIA BORGES

Tu que me levas, vindo do futuro,
E me impeles no rumo do passado
Dize-me qual o destino, qual o fado,
Que hei de claro cumprir no tempo escuro.

Fala. Conta se foi desbaratado
O exército de luz de longo aturo
Que se pensava do tempo forte muro
E se acabou como ouro nunca achado.

Tu que me negas as especiarias
De lavor da razão que antes buscaste,
Oh, dize-me com letra e forma frias

Se por terra, mar, ar, ou sonho puro,
Colhemos outra que não a mesma haste
Só de ânsia antes buscada no futuro.

(1996)





ROCHEDOS

Meu coração agora te pertence
lua que vaga sobre esses rochedos,
eles mesmos reflexos de longínquos
muros, agora esfinges a espreitar
distâncias, a arrimar arquitetura
nostálgica de cercos, a exumar
brasão latino ou artifício mouro.
Meu coração agora vos pertence,
graves rochedos, arsenal de fúrias,
que são artes do tempo, vosso algoz:
em quieta hora da tarde ou noite morna,
decreto imemorial que a espuma lavra,
a ruína e morte, e a solidão, alude
o som da água que ruge a vossos pés.

(2000)





PASSOS E ACENOS

Nada tens de ave. Fera lúcida, olho
felino (pantera de Rilke entre grades),
nunca indefesa, à espreita. Além dos olhos,
bebo teu corpo, teu cabelo (franja
dos dias) – o mais dardeja. Também és
elástica e macia: braços, pernas
de roliça cogitação. Vais, vens.
De pé, agitas os vaporosos membros,
ao calor da voz que atordoa o vento.
Sentada, as formas se acomodam, urdem
rútilo desenho. É quando, pasmo, ouço
o marulho do sexo ávido. Bem
que mereço essa onda, ronda de garras
que me acenam, me buscam pela tarde.

(2001)





ESTRELA SÚBITA

“Onde pela floresta se deixavam
Andar as belas deusas, como incautas.”

(Camões, Os Lusíadas, Canto IX)

You have been mine before,
How long ago I may not know”
*
Dante Gabriel Rossetti (1828-1882), Sudden Light.

Nunca te vi dizer-me que me queres.
Eu queria te ver tocando flauta,
Sem a sabedoria das mulheres,
Na varanda distraída, como incauta.

Na de lusos pensei história antiga,
Ao pressentirem ninfas entre arbustos.
Se o vento manda que o perfume as siga,
A vibração começa pelos bustos.

Vens de um país de renovadas auras.
Como ninfa te portas, se proponho
Mover os muros que entre nós instauras.

Do vento ouço o ruflar de suave escolta.
Marinheiro que agora sai de um sonho,
Cogito que eras tu que estás de volta.


SSA/BA, 14 fev., 2009

*”Você já foi minha,/ Em que tempo, não posso saber"(tradução livre).

(2011)





CONVITE AO ÓCIO VERDADEIRO
                  
O Meliboee, deus nobis haec fecit.
                                               Virgílio (I Bucólica)

Hás que mirar-me o coração primeiro
e o sonho que madruga a madrugada,
onde cultivo raízes por inteiro,
que avançam pelo dia em disparada.

Aquela frase de Virgílio amada,
que atribui a um deus o ócio verdadeiro,
aponta para a face alaranjada
da lua cheia em cima de um outeiro.

Mas há quem diga que não somos nada,
que dias e anos vão em cavalgada,
deixando rastros de tristeza e dores.

Arme-se então a cena de um idílio.
E vamos viver na Ilha dos Amores,
com tudo o que nos ensinou Virgílio.

(2012)





AO TOQUE DE SINOS

And therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee.
​​​​​​​​                                                                           (John Donne)

Procuro nos desvãos da casa morta
Vozes que um dia me chamaram Flor.
Procuro no silêncio assustador,
No vendaval de ausências, uma porta
Que me leve ao quintal, ao verde brejo,
Que repercuta a mesma cor nos campos,
No trânsito de luz dos pirilampos,
Devolva-me um dos sonhos que ainda almejo;
Os cavalos-de-pau, na tarde amena,
Sobre aguadas e pedras, paz serena
Que se esparrama sob o jaqueiral.
Oh, casa que povoa minha insônia,
Quando a noite me liga a John Donne,
A sinos repicando em vendaval!

*John Donne, “Meditação 17”: “Nunca procures saber por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”. 

(2016)





INSTÂNCIA DE FLOR E VASO
                   (D´après Ortega y Gasset sobre a pintura)

Afortunadamente, a rosa ignora
A ciência botânica, tanto quanto
Eu, ainda jovem, saindo porta afora,
Não saiba aonde me leva meu espanto.
Pego um objeto; por exemplo, um vaso.
Olho-o ali; miro-o e sei que me está perto.
Se distante, o não sei capaz acaso
De me manter o mudo olhar desperto.
Tenho-os como uma só coisa, igualmente:
Se longe, vejo bem mais o fundo oco,
Que foge sem que paire em minha mente
O olhar que me estremece, quando toco.
         Olhando, atento, vou seguindo a luz,
         Que deste ponto é a flor que me seduz.

(2016)





DEVANEIOS OUTONAIS

Pensei-me à beira já do estígio rio,
Tantas mãos me seguram neste barco.
Farto de ontens, me acalmo e me alivio,
Quando miro ainda distante o vasto arco
Da noite que, apressada, me acompanha
Neste final de estrada sonolenta.
Busco um farol; resisto à angústia e à sanha
Inimiga da tarde que se ausenta,
Neste deserto de almas que me cerca,
Me avisa; uns poucos vejo de outros dias.
Em pé, me estanco, firme, junto à cerca,
Como se ouvisse canto e melodias:
         Se morna brisa bate em minha fronte,
         Não quero me segure a mão Caronte.

Caronte,em grego Kháron; segundo a mitologia, barqueiro encarregado de levar a alma dos mortos através do Estige, o rio dos Infernos.

(2016)




_____________________________________________________
Nascido em Uruçuca, antiga Água Preta do Mocambo, no sul do Estado da Bahia, quando ainda distrito de Ilhéus, Florisvaldo Mattos diplomou-se em Direito, em 1958, mas optou pelo exercício do jornalismo, no mesmo ano, integrando inicialmente a equipe fundadora do Jornal da Bahia, como extensão da militância cultural de parcela do grupo nuclear da Geração Mapa, que atuou na Bahia, nos anos 1960, sob a liderança do cineasta Glauber Rocha. É professor aposentado da Universidade Federal da Bahia, onde ministrou disciplinas e ocupou cargos na Faculdade de Comunicação, de 1961 a 1994; entre 1987 e 1989, exerceu a presidência da Fundação Cultural do Estado da Bahia; escritor e poeta, desde 1995 ocupa a Cadeira 31, da Academia de Letras da Bahia. Publicou os seguintes livros: Reverdor, 1965, Fábula Civil, 1975, A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior, 1996 (Prêmio Ribeiro Couto, da União Brasileira de Escritores), Mares Anoitecidos, 2000, Galope Amarelo e outros poemas, Poesia Reunida e Inéditos, 2011, Sonetos elementais, 2012, e Estuário dos dias e outros poemas, 2016 (todos de poesia); Estação de Prosa & Diversos, (coletânea de ensaios, ficção e teatro, 1997); e A Comunicação Social na Revolução dos Alfaiates, 1998, e Travessia de oásis - A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa, 2004, ambos de ensaio. Jornalista, em Salvador, além do Jornal da Bahia, atuou nos jornais Diário de Notícias e Estado da Bahia, do grupo Diários Associados, do jornalista Assis Chateaubriand, e exerceu por 14 anos a chefia da sucursal do Jornal do Brasil na Bahia; afastou-se do jornalismo em 2011, no cargo de Diretor de Redação do jornal A Tarde, de Salvador, onde antes dirigira, de 1990 a 2003, o caderno “Cultural”, premiado em 1995 pela Associação Paulista de Críticos de Arte - APCA.  

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