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Alasca (por Amanda Marques)

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Procurei seu rosto entre os estranhos e tive cuidado ao pronunciar seu nome. Sim, era você a ler um livro sentado à mesa do Alasca.
Ali ficamos, dois descrentes que se desconheciam, nos convencendo de que o acaso sabe muito bem dar nó sem pontas. Das Los.
Eu não vestia jeans desde a ultima entrevista de estágio, peguei duas blusas iguais no armário da minha mãe. Escolhi a azul, vermelho era demais para um estranho. Ignorei o batom, preferi o gesto à cor, precisava da sinceridade de um sorriso cru e pálido. Andava naturalista naqueles dias.
Você sorriu meio inglês austero e abandonou o livro. Me senti importante e pensei comigo “preciso valer mais que esta leitura”.
Meus pés gelados, a conversa fluía, meus dedos sem lugar, você me olhava e meus olhos sem lugar. Meus dedos sobre a mesa ganham um elogio e parecem procurar uma caverna.
Na rua já não passavam carros, eu olhava ao redor e nenhum conhecido. Àquela hora na cidade-ovo todos se ocupavam de suas vidas e ninguém passaria ali pra interromper nosso debate.
Você pediu o café com leite mais simples da casa. Nesse momento te transferi do bloco dos intelectuais frescos para o dos carinhas de chapéu panamá que fumam um cigarro na lanchonete da faculdade. Até ali eu tinha certeza de que vc era fumante.
Pedi um café pra tentar parecer normal. Alternava frases com doses de respiração, não poderia tropeçar nas sílabas e nos plurais. A xícara cheia, meu café esfriou. A rádio da franquia meia-boca do café de são paulo começou a tocar sertanejo. Eu já previa, mas preferi não propor outro endereço e não ser desagradável. Se eu te ligasse ou enviasse uma sms seria desmarcando pra nunca mais. Costumo desistir das coisas antes que elas aconteçam. Não foi por acaso que certa vez me chamaram de escorregadia. Ele estava certo.
Evitei as teclas do celular, trajei a mulher bem-resolvida e me equilibrei no salto como se meus pés calejados não estivessem cansados de rodopiar rodopiar e ir a lugar nenhum.
Mas no dia seguinte, no bar ao lado, você disse que seria capaz de se inscrever na dança de salão só pra rodopiar comigo, e que tudo isso era muito sério.

Amanda Marques



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