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A. C. SECCHIN - INÉDITOS

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ANTONIO CARLOS SECCHIN

5 POEMAS INÉDITOS









MIRÓ, Joan – Els Castellers, 1974





Língua negra, Rio 30 graus






Bem longe explode em preto
a pele cósmica de uma estrela,
aqui arde em silêncio
a pele grossa de uma vela.
Negra é a língua que se enreda
para um salto sem saber o que a espera.
Negra, negra língua,
com seu gosto de esgoto e de quimera.
Língua que se desfaz, liquefeita,
na cachaça trôpega dos bares da favela.
Língua que ao pó retorna, heroína
celebrada na veia aberta das vielas.
Passos que galopam para o abismo,
expulsando a pontapés a primavera.
Um fio de luz desmancha o frio.
Anoitece no Rio de Janeiro.












Nadei dez metros sob a correnteza,
e me afoguei no ritmo do mundo.
Levei no bolso um texto, na certeza
de que ele voltaria mais profundo.
Depois eu pretendi nova conquista
a meu soneto ínfimo e pedestre:
coloquei-o na mão de um alpinista,
para ele assim subir ao Everest.
Desejei-lhe uma longa eternidade,
estendendo-se além de minha vida.
A melhor solução foi empalhá-lo,
colocá-lo na sala de visita.
De lá ele me exibe, com descaso,
o riso fundo de um soneto raso.




Soneto profundo








Não






Não, não e não. Nem sei se há no meu sim,
agradabilissimamente a mim,
senão o sinal para que tudo enfim
permaneça no não até meu fim.

Não, não, não e não. Não digo que não
haja certa palavra em minha mão
que tenta abrir à força um alçapão
para assim acalmar o coração.

Não quero, não. Prefiro essa dureza
malvinda no comício da certeza.
Misturo às águas dóceis da beleza
meu não envenenando a correnteza.













Tem um lado com
Tem um lado zen
Tem um lado zoom
Outro desfocado
Tem um lado chão
Outro lado alado
Tem um lado não
Tem um lado vim
Tem um lado voz
Tem um lado mim
Tem um lado algoz
Tem um lado sim
Tem um lado sou
Tem um lado quem?
Tem um lado zero
Tem um lado nem
Do lado de lá
Tem um lado além
Tem um lado lei
Toma então cuidado
Vem para apagar
O teu braseado
Tem um lado solto
Tem lado soldado
Esse lado aí
Te deixa confuso
Pronto pra arrochar
Feito um parafuso
O lado soldado
Me deixa lelé
Me imobilizando
Do pescoço ao pé
Preso na armadura
Eu fiquei fundido
Frente à solda dura
Me senti banido
Quero me sentir
Desencadeado
Com meu lado em
Tudo quanto é lado, a-
brindo um contrabando na
Contramão da pista eu
Finjo que sou cego
Pra não dar na vista
Eu procuro enfim
Qualquer endereço
Que não me dê um nó no
Meio do começo
Tem um lado aquém
Bem descontrolado
Tem um lado assim
Tem um lado assado
Um fermenta ali
Outro deste lado
Tem um lado sem
Mesmo acompanhado
Tem um lado tem
Com mais nada ao lado
No meu lado 1
Não fico à vontade
Ele só me dá o
Dobro da metade
Entre o não e o sim
Não quero o talvez, me-
lhor me embaralhar
Junto com esses três
Tem o lado 3
Lado bem bacana
Desde que caibamos
Quatro numa cama
Tem o lado light
Esse me seduz
Pois além de leve
Ele me dá luz
Lá no lado dark
Nada é tão festivo
Mas até no inferno
Eu me sinto vivo
Tem um lado mas
Que chega atrasado
Avisando a mim
Que tudo somado
Só resta a raiz
De um metro quadrado
Todo o resto é lero
Para o boi dormir
Múltiplo de zero
Pra me dividir
Entre o lado bom
E meu lado B
Entre o aqui e o lá
Fico lá e aqui
Sem saber dizer
Onde vou chegar
Nem tentar saber
Que lado seguir
E neste translado
Eu só quero quem
Queira vir comigo a-
lém do verso 100.




Translado
“o lado além do outro lado”








A gaveta







A gaveta está trancada,
a chave levou Maria.
Nela guardados os planos
de quem já fui algum dia?
Decerto aí também mora
a linha da pescaria
que mirou no meu futuro,
mas errou a pontaria.
Desconheço se ela abriga
alguma mercadoria
dispondo de mais valor
que um pardal na ventania.
Mas por que agora eu escuto
numa quase litania
as vozes que dela saem
e se engrossam em gritaria?
Chamo então um bom chaveiro
da Europa, Olinda ou Bahia,
para arrombar a gaveta,
pois lá do fundo eu traria
a chave de algum passado
que aprisionado me espia.
Chega um e chegam dez
chaveiros em romaria.
A gaveta a todos eles,
um por um, derrotaria.
São bem fracos contra a força
e a resistência bravia
que a tal fechadura impõe
frente a tal cavalaria.
Na madrugada, cansado
pela perdida porfia,
percebo voando no ar
uma dúbia melodia.
Provém daquela gaveta:
ela afinal me induzia
a entrar sem maior esforço,
já que a mim se entregaria,
e dentro de si guardava
peça de imensa valia;
eu agora nem de chave
nem de nada carecia.
Conseguiu me convencer
com voz bastante macia,
e, pronto para apossar-me
da mais pura pedraria,
abri-a com a mão amante
de quem pisa em joalheria.
O tesouro acumulado
era a gaveta vazia.
Dois insetos passeavam
sobre a superfície fria.











Antonio Carlos Secchin





É professor emérito de LiteraturaBrasileira da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e DoutoremLetraspelamesmaUniversidade.

Poeta com seis livros publicados, destacando-se Todos os ventos (poesia reunida) ganhador de três prêmios para melhorlivro do gênero publicado no paísem 2002.

Ensaísta, autor de João Cabral: a poesia do menos (1985), Poesia e desordem (1996), Escritos sobre poesia & alguma ficção (2003), Memórias de um leitor de poesia (2010), Papéis de poesia (2014) e João Cabral: uma fala só lâmina (2014). Proferiu 479 palestras em vários estados do Brasil e no exterior. Professor convidado das Universidades de Barcelona, Bordeaux, Califórnia, Lisboa, Mérida, México, Los Angeles, Nápoles, Paris (Sorbonne), Rennes e Roma.

Autor de cerca de 500 textos (poemas, contos, ensaios) publicados nosprincipaisperiódicosliterários brasileiros e internacionais.

Eleito emjunho de 2004 para a Academia Brasileira de Letras.

Em 2013, a editora da UFRJ publicou Secchin: uma vida em letras, volume com 88 artigos, ensaios e depoimentos sobre a sua atuação nos campos da poesia, do ensaísmo, do magistério e da bibliofilia.






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