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mallarvista nr. 001 |
por Chris Herrmann
Marcelo Diniz, professor, pesquisador e poeta,
é o entrevistado do primeiro número da Mallarvista:
1. Como você vê a utilização das formas fixas na contemporaneidade?
md: creio que o uso da forma fixa implica-se em um jogo que conjuga tensão e ressignificação. não saberia dizer se é um procedimento peculiar da contemporaneidade, pois se trata de uma conjugação que me parece mais peculiar à própria tradição das formas fixas, indiciando certa história da performatividade lúdica da poesia. em se tratando do soneto, a forma fixa mais difundida pela tradição ocidental, sua difusão sempre se deu através da tensão ente o petrarquismo e o antipetrarquismo, entre o sério elevado e o baixo satírico, entre o etos da ascese estética e o etos paródico, ou mesmo pornográfico. contemporaneamente são poucos os poetas que adotam a forma fixa como um procedimento sistemático: a décima, a oitava e mesmo o soneto aparecem de forma ocasional e, nos melhores casos, com tratamento auto-irônico. creio que essa raridade se deva à peculiaridade de um tempo em que a poesia se caracteriza pela multiplicidade de procedimentos formais, fruto, decerto, do abolicionismo das vanguardas do século XX. mas, não só: a baixa incidência das formas fixas me parece também condicionada por certa desatenção com a oficina do verso, que, em grande parte, se deve à crise cultural de nosso tempo.
2. De que forma a política atravessa ou pode atravessar o poema?
md: homero, virgilio, dante, camões, racine, baudelaire... ao que parece, toda a história da poesia parece atravessada pela política, seja de forma alienada ou não. se podemos ler nas epopéias os índices de um pacto entre a poesia e o poder, ou ainda, a instrumentalização da poesia como aparelho ideológico e estetizante do poder, podemos ler em sua história os índices de ruptura desse mesmo pacto, o que remonta à tradição crítica da poesia na era moderna. o que é mais interessante: pode-se observar na história da poesia a acepção da política no sentido mais extenso, o que tange, não somente à política institucional ou de representação do macropoder, mas sobretudo, às políticas do corpo e da linguagem. a poesia erótica, a poesia fescenina, poesia pornográfica em muito serviu de veículo de proposições políticas de afrontamento de tabus do corpo e da sexualidade; mesmo o anarquismo dos sentidos que deriva da poética rimbaudiana, por exemplo, em muito parece, se não precursora, cúmplice da perspectiva política com que Foucault veio a conceber como microfísica do poder, ou ainda da política molecular deleuzeana. no que diz respeito à política da linguagem, a poesia é atravessada desde sua instrumentalização emuladora da língua, que perfaz todo o projeto apologético do estado moderno, ou ainda, dos projetos ideológicos identitários nacionalistas, no que em muito estão implicados os processos de canonização, bem como no procedimento crítico e experimental da desautomatização e desestabilização de formas, conceitos e afetos nucleares da cultura.
3. Qual o papel da universidade no que diz respeito à vida cultural da poesia?
md: um importante papel. é difícil comensurar a quantidade e a variedade de lugares sociais em que a poesia é cultivada. a universidade, decerto, é um desses espaços e, talvez, o de mas extensa tradição, uma tradição que assimila as mais profundas tensões que experimentou a poesia em sua história. para a poesia, sempre foi importante o estudo, a tradução, a oficina. a universidade me parece ser um desses espaços privilegiados de se aprofundar a atenção, de se levar a sério a poesia. a pesquisa sistemática e heterodoxa, o ambiente polifônico, a liberdade do trabalho com a linguagem e, sobretudo, a formação de leitores e professores de poesia fazem da universidade um desses oásis ecológicos que ainda respira neste mundo careta e utilitário que nos cerca.
4. Os estudos da obra de Glauco Mattoso e novas formas do soneto são as bases para o seu próximo livro. O que você poderia falar sobre isto para nossos leitores?
md: meu estudo sobre a obra de Glauco Mattoso é decorrente do projeto de meu próximo livro de poemas. escolhi fazer um livros de sonetos, aí sim, descobri Glauco Mattoso. até então, eu era seu leitor ocasional; a partir de então, já me senti aprendiz, já me senti fã, já me senti imitador. Glauco Mattoso é uma das escritas de poesia mais impressionantes de nosso tempo, desses nomes que ponho fé de ser lido daqui a duzentos, trezentos anos. Quanto ao meu livro, o que posso adiantar é a intenção de ser divertido. A maioria dos sonetos aponta para um estilo francamente satírico e lúdico, um quase manifesto pela metalinguagem em contraponto à poesia dita grave ou séria.
5. Como você vê o panorama da poesia contemporânea, sua relação com os vetores da história como hoje se apresentam e , claro, com as mídias pelo meio das quais é difundida?
md: o panorama da poesia sempre foi plural. e nessa pluralidade social, a história da poesia sempre foi múltipla, não linear. no que tange às mídias, a poesia sempre foi técnica e tecnológica: a tecnologia do canto, a tecnologia do livro, a tecnologia da imagem, a historia da poesia me parece intimamente implicada nas formas de se executar a linguagem, não raro sempre teve parte e tomou partido do contexto tecnológico implicado em sua produção. na cultura brasileira, a canção popular sempre foi um ambiente antropológico fértil à poesia: de Nelson Cavaquinho à cultura dos rappers de hoje. digo com isso, decerto, a extensão que atribuo ao termo poesia, que pode ser definido como todo trabalho em que a palavra ocupa papel protagonista e criativo. nossa cultura também é a da poesia concreta, que, depois de toda polêmica que causou, deixou o legado da atenção gráfica e visual da palavra, a palavra como coisa, muito explorada hoje no meio virtual e nas artes plásticas. o arco que compreende o contemporâneo é imponderável, incompatível com a ideia sugerida no termo panorama, que sugere o ponto de vista privilegiado para se abarcar certa totalidade de eventos. não crei que haja esse lugar de observação, creio msmo nunca ter havido na história da poesia. além de, por vezes, insinuar o sentido etapista da história. um dos aspectos que muito me atrai no estudo da história da poesia é a idéia de que a história da poesia não é etapista. a história dos historiadores pode ser que já tenha sido assim, mas a história que a poesia parece nos contar é justamente o contrário de etapas sucessivas. para a poesia, ou seja, para ato criativo com a palavra, a história é acervo, todo o passado é arquivo, ou seja, pode ser atualizado, ressgnificado, tudo pode ser contemporâneo. nesse sentido, seria mais interessante pensar uma cartogafia da poesia do que uma história da poesia, na medida em que a atenção cartográfica elabora a metáfora da viagem, da diferença, da pluralidade, das tensões e dos domínios, inclusive dos processos de colonização de que a poesia e muito da literatura também foram instrumento.
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capa do seu próximo livro |
Um Soneto...
o eu de todo mundo é o inquieto
eco de um outro eu irrequieto
que ecoa do ancestral do dialeto
que outrora talvez fora idioleto
e sendo bisavô também bisneto
o eu de todo mundo traz um feto
que dentro traz ainda o seu projeto
de ser o tetravô de um tetraneto
logo basta que um eu faça um soneto
para que neste objeto um outro objeto
tal qual traga consigo o seu discreto
e então multiplicado e locupleto
será este planeta um irrepleto
eu a eu eco a eco neto a neto
md
Marcelo Diniz é professor do Departamento de Ciências da Literatura (UFRJ), publicou seu primeiro livro de poemas, Trecho, pela Aeroplano e Fundação Biblioteca Nacional em 2002, e seu segundo, Cosmologia, pela 7 Letras em 2004. De sua pesquisa sobre poesia moderna e contemporânea, atém-se às relações da poesia com a metalinguagem, o lúdico e o corpo, do qual desdobra seu trabalho como tradutor de poesia francesa, seus estudos sobre a obra Glauco Mattoso e sua exploração do soneto, cujo resultado pretende expor em seu terceiro livro de poemas: +1, ainda não publicado. Traduziu Notre Dame de Paris, de Victor Hugo (Estação Liberdade, 2010). Parceiro frequente das letras para o trabalho musical de Fred Martins, com letras em várias canções do artista desde seu primeiro trabalho em CD.