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Cinco poemas de Bianca Pataro

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Da santa caída

O vazio era tão grande e se tornou imenso.
Ficaram mudos naquela falta de som.
Nenhum sino.
Nenhum tambor.
Tudo se calou diante da virgem que se lançou ao chão.

Espalhou-se em azul e rosa.
Olho de vidro mirando o céu pálido das bocas abertas.
Saias brancas respingadas com o sangue alvo
daquela que recusou o andor.

Caída,
sobrou-lhe o mosaico de uma fé sortida.
Imaculada não é mais.
Manchou-se na humanidade do couro golpeado.

Rendeu-se aos catopês e marujos e bailou.
Requebrou-se rolando entre os chocalhos dos pés.
Louvou sua fuga da santidade e misturou-se aos brincantes,
ansiando por tocar pandeiros e entoar lamúrias.
Desejosa em pagar as próprias promessas.











Em terços

A novena daria errado desde iniciado o Pai-Nosso.
(insistia em recontar lágrimas de um rosário sem amém)

Lembrava aos tropeços a oração da lamentação.
(mas sem culpa não há pecado a ser perdoado)

Rezava para o que nasceu sem exemplo.
_______________________________a perda foi princípio.
Como pedir salvação para o que nunca existiu?

O sino reclama quem o toque
enquanto recorda a página em branco preferida
ao cordel que poderia ter escrito naqueles braços.

Nas escadas da torre abandona o terço desfiado,
contas suplicadas pela história mal traçada.
Sua dor calou-se em ser vivida e os badalos ficaram mudos em bronze.

No meio da escuridão do silêncio,
quebrou as asas de um anjo e preencheu-se naquele vazio. 
Preferiu uma catedral sem velas acesas:
________________________________não havia santo para pedidos não sofridos.










Branco e quente

Isso não é um poema de amor.
Sequer é um poema.
É sobre um rato rastejando por um gato.
O gato arrastando-se pelo leite.

O rato quer o queijo que repousa no estômago do gato:
o leite podre, talhado.
O gato anseia o leite fresco, quente.

O rato se desespera pelo leite sólido nas entranhas do gato.
E o gato salta no leite que se despeja.
E o rato perambula pelo esgoto atrás do gato.
O gato lambe o leite.
O rato lambe as patas.
Resta ao rato jogar-se na goela do gato.

O gato engole o leite.
O rato come o queijo.
Encontra dentro o que deixou fora.
Prisioneiro abraça o carcereiro.
Gato e rato querem a mesma coisa.
Dêem-lhes uma teta de vaca.
Unam-se pelo arcaico desejo: o leite derramado.









Dos riscos que vazam a pele

Bússulas nos olhos orientam os sentidos pra longe do rastro de fadas coloridas no fim da infância e no começo das pernas. Espadas cruzam o coração que brota no braço direito, pingando o sangue morno de amores piratas: jovens e embriagados. O nome, apagado em letras maiúsculas, imortalizado no museu que a pele abriga, clama pelo príncipe que salve a moça. E o dragão se enrola e devora sua coxa. Presa fácil nesse mapa biográfico. O tempo desbota no amanhecer eterno de um sol agarrado à lua minguada (paralisada) à esquerda de costas largas e infinitas, iluminadas por borboletas que agitam estrelas. São Jorge avesso à guerra travada entre ombros floridos em preto e branco (soldado cego sem guarnição) Abracem logo os pássaros antes que voem no balão.



Tempo entalado

Corro para alcançar o relógio e mal percebo que os ponteiros rodam na minha garganta. Me engasgo com minutos medonhos travestidos de horas paradas devoradas sem mastigar. Os segundos arranham o céu da boca e arrancam meus dentes com a dedicação infinita que o futuro possui. A cabeça gira no compasso de Aeon construindo rotas inacabadas cavadas entre o passado, vazio de estar, e o presente, repleto de ser. Engoli o tempo sem desfiar as pedras arrastadas nesse rio de durações que jorra em mim. Se fosse um relógio cuco usaria suas penas para voar. O destino faz cócegas em meus pés.


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