COMO SE UM BARCO
para André Goldfeder
como se um barco fosse (um serrote)
cortado ao meio como
se um corte (ainda) doesse
como se um homem
fosse
enterrado (vivo)
na areia como se houvesse
(barco homem areia)
alguém que atravessa o atlântico
a nado
como se (um
pássaro) fosse um peixe
costurando o azul
como se um corte
(fosse) profundo (e) ainda
sangrasse como um guepardo
cortado ao meio como
se um corte (ainda) doesse
como se um homem
fosse
enterrado (vivo)
na areia como se houvesse
(barco homem areia)
alguém que atravessa o atlântico
a nado
como se (um
pássaro) fosse um peixe
costurando o azul
como se um corte
(fosse) profundo (e) ainda
sangrasse como um guepardo
(casaco de pele) corre
como se o tiro
como se o tiro
não o acertasse
como uma âncora que ainda
como uma âncora que ainda
pesasse apesar da ferrugem
como se (a gente) fosse
como se (a gente) fosse
a própria ferrugem como
se um bêbado fosse (enterrado)
uma cigana que (ainda) sangrasse
como um serrote que nunca
cortasse a areia (ou um
se um bêbado fosse (enterrado)
uma cigana que (ainda) sangrasse
como um serrote que nunca
cortasse a areia (ou um
pássaro) como
se a vida não fosse (casaco
de pele) como uma âncora:
barra-pesada
como num sonho
que nunca ocorresse
– um homem que fosse cortado ao meio –
como um guepardo
se a vida não fosse (casaco
de pele) como uma âncora:
barra-pesada
como num sonho
que nunca ocorresse
– um homem que fosse cortado ao meio –
como um guepardo
que fosse (a História)
incapturável
em sua beleza azul e cigana como
se um peixe fosse (o atlântico)
a gente e ainda sangrasse
como se um barco (metáforas náufragas)
valesse por si: tiros na água
incapturável
em sua beleza azul e cigana como
se um peixe fosse (o atlântico)
a gente e ainda sangrasse
como se um barco (metáforas náufragas)
valesse por si: tiros na água
SOBRE OS NÔMADES
não é só a neve
nem os olhares
(nessa penumbra
desgastes são
pardos)
não é o prenúncio
nem tudo são flores
tampouco
o excesso
de zelo ou silêncio
não é a aurora
não é a savana
(talvez um café
em camberra
ou estocolmo)
não é o futuro
nem são os ciganos
não é maiakóvski
nem elixir mágico
não são as palavras
band-aid
sondagem
não são as ideias
ou cópias piratas
não eram raposas
nem são cogumelos
não é a américa
negócios à parte
não é um cachimbo
nem tudo é só
sexo
ou fruta madura
abaixo-assinado
não é mais segredo
um grama de rádio
amor desbragado
não tem mais remédio
não é pela rima
(oh não obrigado)
apego aos signos
um gole de água
o óbvio / o vário
(o sim
contra
o sim)
não é um cristal
nem um origami
não é um deserto
nem fórmula
química
nenhum papelote
cigarros na cama
não é suicídio
ou quase uma arte
a crise
econômica
ou a eurocopa
nada essa espuma
nadica de nada
é o x do problema
ou a chave de ouro
não são torres gêmeas
não é kardecismo
talvez reticências
de inenarráveis
jardins impossíveis
num caleidoscópio
ou neandertais
sem nervos de aço
(nunca mais nevermore)
: o apocalipse
não é uma hipótese
PROJETO NOVO RECIFE
1.
em plano aberto, a cidade
se inventa como o próprio
homem que a projeta
ou, melhor, como todos
os homens se projetam
no fazer-se cidade
como invento comum
e aberto. tudo nela
aparenta vigor:
letreiros, ruas imensas
– como o rio que, de
fato, a atravessa –,
cafés, bondes elétricos
(naquela tarde, no mais
alto edifício
do centro, um poeta
perseguia com seu lápis
esse modelo).
2.
na sequência, a cidade
se revela como, agora,
o homem que a persegue
ou, ainda, como os outros
homens que existem
em sua fome espessa
como o avesso da fruta
sobre a mesa. tudo nela
arrebenta turvo:
guaiamuns, palafitas
– como as raízes aéreas
crescendo no mangue –,
a polícia, um hospício
(de longe, com sua régua,
o poeta analisava
esse cenário que, em nome
do progresso, a cidade
modelo ocultara).
3.
em plano aberto, a cidade,
investimento certo, se
inventa como o próprio
homem que a projeta.
ou, melhor, como todos
os homens que investiram
na cidade e seu futuro
exclusivo. tudo nela
se renova ímpar:
museus, shoppings
– como a pista asséptica
de qualquer aeroporto –,
food trucks, praça cívica
(um mais novo edifício
cresce e suas raízes
aéreas soterram, com
o mangue, este poema
e seu modelo).
ORA (DIREIS)
quantos anos, em média, dura
uma estrela?, indagou-me. a resposta,
que parece óbvia, depende
do observador – por exemplo, pensei eu,
em estado de vigília, ontem
ele me disse que o amor
é um conceito por demais abstrato
conquanto contássemos juntos
todas as horas até o fim – para um vírus,
talvez, dure toda uma vida. para nós,
nem mesmo isso (ínfimos
que somos). ele era ínfimo mesmo
e suas ideias pareciam-me
tiradas de um documentário qualquer
da tevê a cabo. e para um deus,
quanto duraria?
pensei, naquela noite,
em responder com outra questão:
o que faríamos se tivéssemos acesso a elas
(as estrelas)?,
mas sabia intimamente que sua energia
pouco seria usada num poema
– “ora (direis) ouvir” etc.
talvez criássemos bombas,
usinas extraterrenas ou objetos
de pura luz (adeus,
fecalidade),ele me disse e era ínfimo
como eu mesmo sou ínfimo, emaranhado
entre meus átomos
e tantas outras – ora (direis) –
insaturáveis formas, sem enigma.
o que faríamos se tivéssemos acesso a eles
(os poemas)?
GARATUJAS
1.
não há, nesse poema, nenhuma
garantia. a mão imita o fôlego
da voz, a voz gagueja –
passos na calçada. um homem
dorme (é noite) contra o muro
e mal o enxergo
aqui, entre meus versos
: desenho (admirado de si
mesmo), que é tudo quanto tenho. e
tudo é noite.
2.
um monstro que engolisse (esse
poema) toda abstração
de um outro ser. o homem,
ainda lá, – (luto) – dormindo
e eu, que escrevo
a cegas nessa máquina, mastigo letra a
letra (esse poema) em busca
de um nome, um nome apenas.
talvez, a palavra crack, a palavra totem, a palavra gira, a palavra grão. talvez, a palavra água, a palavra lavra, a palavra ar, a palavra ave (“matéria de poesia”), a palavra casco, a palavra parole, a palavra langue, a palavra pouco caso, o palavrório, o palavrão. talvez, a palavra não dita, a palavra só ritmo: entropia.
3.
escrevo (rasgo o véu)
e tudo é noite.
um monstro engole
a luz do poste em frente.
em breve, o Sol renasce
– estrelas morrem –
e o homem jaz opaco
entre todos
os seres
que existem
no que escrevo
: calçada irregular, alguma
árvore, restos de comida, um
par de botas
sujas, longas
caminhadas,
câmeras, garagens, muitos
muros, (o homem
ainda dorme), pessoas
apressadas, garrafas,
jornais, guimbas, folhas
secas, semáforos, motores,
mais
pessoas, algum
risco de pombas.
4.
luto contra o monstro
(esse poema) no espelho,
sangue entre
os dentes (nossa
língua), todas as
manhãs. nas frestas
dessa máquina observo,
tão só com minha voz
(seus cacoetes), passos
na calçada, mais
pessoas, um homem
dorme, opaco, e ninguém
nota o verso inútil
(dorme) que desenho.
5.
luto. como se esse verso
inútil, inscrito
no espelho, renascesse
e desse forma aos seres
que existem
– sistema
simples
em tudo
contrário à lógica
dos bancos, à polícia –,
um homem dorme, opaco,
e sua fome (a mão
imita, tímida,
a mudez da voz
ante o real)
é uma sombra
, um véu que esconde
o todo. pessoas apressadas,
entropia.
por trás de toda sombra
há um corpo
e é esse
corpo (cego) que procuro.
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Renan Nuernberger nasceu em São Paulo, em 1986. Como poeta, publicou Mesmo poemas (Selo Sebastião Grifo, 2010) e Luto (Patuá, 2017), ambos com apoio do ProAC. Como crítico, organizou a antologia Armando Freitas Filho (EdUERJ, 2011), para a coleção Ciranda da Poesia.