(Só mãe de criança abortada reconhece o amor no vermelho vivo do corpo do animal morto). Há uma mulher de costas, cabelos curtos, pelos grossos sujando a nuca. Peço para ver seus pentelhos, os fios longos entretrançados como um cobertor felpudo. Acaricio com a palma da mão aberta. (Sonhei que eu inundava. Meu corpo a inchar como uma esponja. Acordei em lençóis úmidos e escorreguei da cama como uma enguia). Chove lava. Visto a calça depressa, preciso de carne fresca. Chovo. (A galinha me olha de um olho só, ciclope de ladinho, frango assado, papai e mamãe e o açougueiro gargalha, sacode todo mole. Tem larva na carne fresca). Existe essa coisa perto da morte que não alcanço. (Amarra, pendura e deixa pingar, que o chão apaga a última gota). O sangue no antebraço que a luz baça faz preto. Punho cerrado, uma lasca de vida agarrada como última. (Nada importa, se há dor). Olha nos olhos, mas não olha os olhos. Deles, nem sabe a cor. Tem. Um sorrisinho antagônico e uma hipocrisia mordaz na fala rala. Olho de bicho morto. (Numa ilusão, que seja, temos hoje mais do que desejaríamos, fome e dor). Como calada. Nos comemos caladas. Dois animais cozidos de quatro. (Um dia, ela bateu na minha porta e disse que me chuparia a noite toda se eu a deixasse ficar). Ela chupando os ossinhos do pescoço do frango, a baba no queixo, parece a minha avó desdentada comendo, a minha imagem mais pura, o meu deus encarnado, na boca, de boca, na boca, deus, na boca! (Ela tem olhos na boca). Lagrimou sangue, lembro, quando recebeu nos braços o bebê morto. Por isso veio até mim. Eu estava lá. Ainda estou. Segurando sua mão fria. Mão inchada de soro, roxa como a cara da criança. Eu estava, sempre estive. (Peço: não vá). Espera, mas a mãe não chega e ela não tira os olhos da criança gorda e triste que brinca de escorregar na perna peluda do pai de pau duro porque a menina ri sem dente. (Onde está o amor nisso?). E eu espero até perder o sono e as estribeiras, porque a gente sempre espera, ainda que encenando uma lucidez equina, sobre um fluxo apocalíptico de indeterminações. (Quero dormir vinte e quatro horas sob a chuva. Não vai dar em nada, esse ponteiro doente). Espero. A cara dela entre minhas pernas, o nosso cheiro de carne crua. (Viver de fome). Porque ainda quero. Aprender a me expor, rabiscar na pele minhas faltas e excessos, meu desalinho e as arestas a aparar. (Um pedaço de vergonha, o tempo). Mas ela não vem porque sei, sei onde ela não está. Então o refluxo, o asco de querer. (Pelos na língua). Porque quero e não estou. Viva como o vermelho do animal morto. Que não abre mão, no silêncio, de sua fome-dor.
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