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TRIÂNGULOS AMARGOS (VII POEMAS)

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Helena Figueiredo
                                                         Registo fotográfico - Marta Monteiro


A CICATRIZ

Cacos amontoados, retratos rasgados
 lutas desiguais. 
Toquem as sirenes, os sinos 
clamem aos portais. 
E quando se abater sobre nós o silêncio do fim
pedirei ao vento que não sopre rasteiro.
Acocorada, buscarei entre os despojos
estilhaços de alguém 
a quem chamaram mãe
a quem beijaram de forma veneranda
(dias claros, esses, de supernovas 
de flores em rebento, de paz celestial). 
Fez-me a vontade o vento
e encosto cada ruga outrora curva 
de um sorriso 
mas verga-se a expressão 
ao contorno da mágoa. 
Sou eu, deposta sobre a mesa
exíguo o cabelo, agora baço 
e naquele sinal castanho 
que me adornava o lado esquerdo do nariz
ainda em sangue, a cicatriz.



POEMA SALGADO

Oh mar, oh mar
abri em tuas vagas
o coração magoado
afundei a tristeza
na prata dessa espuma

e tu
enamorado de meu vil sofrer
queres seguir-me os passos
rebentar os taipais da minha alma
num tsunami sem fim.

Prostro-me a teus pés
e numa súplica te peço

não me persigas 
não batas à minha porta
não te guardes salgado
em meus olhos

hoje mais que tristes.

A VENDEDEIRA

Quem que comprar laranjas d´ouro
clamas, como quem transborda luz
elevas ao céu a voz
perdeste a fé nos homens 
virgem decepada
que geraste um filho na hora de fugir.
Era ainda branco o sangue nos silvados
e na oliveira, pendurado
o teu tesouro morreu.
E nada mais aconteceu.
Secaram em teus gestos, os anseios
cobriste de negro o olhar
mulher sem nome
que carregas na cesta o desencanto
tropeça na calçada
deixa que rolem pelo chão esses tormentos
e recolhe viva, a cor da madrugada.
.

NOME DE CÓDIGO: ÓMEGA

Eis-nos chegados ao leito dos enfermos
local soturno onde o tempo sobra.
E preenchemos o teto com quadros nus 
onde apanhámos flores para cobrir os mortos.
Aqui estamos, imunes à felicidade
num corpo que deixou de nos pertencer.
Há um desconhecido para lá da porta
uma encruzilhada agreste. onde reina a anarquia 
um beco sem saída
ou apenas uma poça de lama 
que leva ao suicídio.
Tememos acabar possessos 
ingerindo o nosso próprio fel
perante a branca indiferença das paredes.


O BEIJO ETERNAMENTE DOCE

Tinha nascido
na compulsão do amor

viu as mesas marcadas de sangue
a lei do silêncio espetada nas portas

e sentiu-se só
como o íntimo dos homens.
Escolheu morrer na fonte
onde bebiam os animais.


HOMENAGEM

Hoje, pelas seis horas da tarde
 um homem desceu à terra
envolto em panos brancos e chuva miudinha.

Forrava-lhe o peito a força do trabalho 
e a majestade dos pinheiros bravos.
Tantas vezes o vi passar, a caminho do futuro
esse herói dos dias claros 
que passeava os dedos no rosto dos filhos

 dos netos 
esse guerreiro destemido 
partido a salto, para terras de França
na miséria de outros séculos.

Eram seis da tarde
e um homem desceu à terra, para nunca mais voltar. 


O GARROTE

Tragam os lenços
os que acenámos
os que limparam o suor 
os que secaram as lágrimas 
todos os que lavámos, pútridos de doença.

 Os raios oblíquos
 projetam na parede as sombras
 marionetas baloiçam
 de cá para lá, de lá para cá

a imaginação é um fermento
anestesiado, o espinho verde 
que nos feriu de morte.

  
         

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