Imagino o quanto os poetas se sintam realizados ao ‘gestarem’ um poema, mas esse enlevo só alcança a plenitude quando se dá o encontro do texto com o leitor. Só a partir daí é que, essencialmente, tem início o clímax do fazer poético: no acolhimento do poema pelo leitor. Nessa relação de responsividade, no sentido bakhtiniano, se constrói um misterioso depreendimento no qual os poetas, os escritores em geral, admitem o compartilhamento de seus textos-poemas,que não mais lhes pertencem com exclusividade. Isso faz todo sentido, já li, inclusive, em algum lugar, que poesia faz mais bem a quem lê do que a quem escreve, no que concordo inteiramente. E quando se trata de boa poesia, então, o bem que faz é ainda maior e sempre vem acompanhado de uma dose de encantamento, de surpresa e de inquietude, a cada poema lido. É o que acontece quando lemos o livro de Tito Leite, Digitais do Caos, cujo título já antecipa toda essa dialética de sentimentos extravasada em sua poética, ao situar-se como “Um filósofo do absurdo contra o óbvio” e ainda que visite o “real”, adverte:
“Acredito no estado tal como ele se deserta/ Não Me leve a sério./ Eu minto na caverna”
O leitor se confronta com uma escrita singular, mas que vai além das singularidades subjetivas (permitam-me a redundância) de qualquer escritor. Uma escrita condensada, poemas enxutos, versos vigorosos que transbordam poesia e que se abrem para tantas imagens e sentidos quanto assim o permitirem as diferentes percepções do leitor, ao sabor de “Ventos avessos compõem mistérios partindo ondas”.
Já dizia outro grande poeta, Vicente Huidobro: “Que o verso seja como uma chave que abra mil portas [...]”. Sim, porque a poesia tem de ser plena de significações e não apenas exercício de metalinguagem poética. Não que a metalinguagem seja desprovida de significações, as mais diversas, mas quando o poeta diz “É em luz e transparência que me vasto”, acrescento que o grande encantamento poético está em transcender os limites da sintaxe previsível, aliado a uma semântica do inesperado: é em vastidão e plenitude que reluz o poema. E tão vastos são os sentidos, que o eu lírico sente-se invadido por um “sentimento agudo de lua”. Uma impressionante reificação da lua que se prolonga nos versos, no mesmo alumbramento com que o poeta se “oceana” e se “deserta”.
E se me farto em adjetivações, o faço não com o comedimento de uma crítica literária, o que absolutamente não sou, mas com uma suposta ‘autoridade’ e sensibilidade de leitora, lugar mais que privilegiado e,por certo, o que mais importa, contrariando e indignando – talvez – a ortodoxia da crítica poética.
Nos poemas de Tito Leite cada palavra, cada verso é pensado heideggerianamente e ocupa um lugar preciso no todo do poema. E essa totalidade é tecida, quase sempre, no entrelugar da filosofia, teologia e mitologia, envolta na alquimia de temas diversos como solidão, existência, resistência beatnik e amor, e sempre na dosagem certa:
“A existência tem decotes de Eva. Uma obra original precede o veneno. Amo todos os sentimentos que burlam a minha fé. Sou um mistério desnaturado a esmo no silêncio dos minérios”.
com suavidade:
“Na solidão das flores do universo me beatifico. Doce-ácida primavera beat. A estranheza do mundo me namora em beijos molhados de eternidade”.
e amorosamente:
“Amamos o oceano, o perigo, o desconhecido. Amamos o corpo, a ascese, as mulheres. Amamos o vinho, o piano, o frescor do sagrado. Porque o amor não tem critério de bem e mal”
Essa combinação de temas atemporais com que são revestidos os poemas os define como clássicos? Penso que sim e, nesse sentido, me fundamento em Pound, segundo o qual o clássico não é o que se ajusta a regras e convenções, mas aquilo que se mantém “devido a uma certa juventude eterna e irreprimível (Pound, 1989, p. 22)”. Impossível não retomar a leitura de seus poemas e, a cada nova leitura, uma diferente percepção, um novo aprendizado, um voltar-se pra si mesmo, ou tornar a entrar no mesmo rio e percebê-lo diferente, tal como o eu lírico ‘desenha’ no ETERNO RETORNO:
“No rio de Heráclito, Nietzsche nada. A borboleta tem cheiro de metamorfose.”
Nos mergulhos e viagens por onde a poesia de Tito Leite nos conduz,
“Nau da existência a substância salina, como sagrado é o teu sexo, salgada, a tua língua. Segredos de dunas, os seus olhos sob a lua: lume. Que se pólen em acácia lembram um livro fecundo”
percorremos diferentes temas reconfigurados a partir de influências de poetas de diferentes épocas e faces: de Rimbaud, passando por Baudelaire, Ginsberg a Manoel de Barros, o que lhe autoriza a transgressão, “as coisas que nascem prontas são os fetiches dos tolos”,reação às “TEMERIDADES” sociais, dilemas e contestação que deságuam numa ordem que “veste camisa de linho e chumbo” ao mesmo tempo em que podem ser subvertidas “Fechaduras no oceano — peixes nas nuvens: em ardores quero um porto [previsivelmente]inseguro”. Assim, nas Digitais do Caos, como se não bastassem todos os outros portos visitados pelo poeta, a poesia também é resistência, e nessa “DESLEVEZA DO SER” que tipo de arma seriam os poemas?
Eu ainda poderia me prolongar aqui por mais tempo, a tentar desvelar toda a sutileza, mistério e encantamento com que se reveste cada poema desse grande poeta vindo de Aurora pra iluminar a poesia metaforizada como o“brilho de uma estrela fora de época”, mas seria em vão, poesia não se explica, é pra ser sentida e desbravada em seus labirintos: “gosto dos mistérios, são perguntas sem respostas: labirintos do inefável”.
Seuspoemas deixam “AS NOITES ENSOLARADAS” e nos fazem aprender com ele, “o monge dos abismos”, arremessando-nos pra outras leituras de mundo. Será que alguém já disse o quanto se aprende com bela poesia? Digo agora, então. A linguagem nos constitui e com ela reconfiguramos o mundo, o nosso mundo, no sentido de pharmakon, contraditoriamente, como “cura e veneno”, mas os poemas não mudam, estão lá, à espera, para serem lidos e ressignificados, provocando e reorganizando o caos nosso de cada dia. Mudamos nós, os leitores:“Ainda quero tudo outra vez (mesmo que tarde) numa taça de delírio”.
Enfim, não preciso dizer mais nada, “há algo grande de encanto e além”, tudo o mais ficaria aquém do que já está lá pra ser lido, relido e apreciado, um livro pra se ter por perto, pra guardar junto porque ser “poético é extraviar-se”.
Regina Celi Mendes Pereira, João Pessoa, janeiro de 2017
Regina Celi Mendes Pereira nasceu em João Pessoa, em 1963. É professora da Universidade Federal da Paraíba, pesquisadora do CNPq, editora da Revista Prolíngua e coordenadora da sub-sede da Cátedra UNESCO em Leitura e Escritura. Suas publicações em livros e revistas são todas acadêmicas, em Linguística Aplicada. É leitora e apreciadora de poemas e, de vez em quando, arrisca-se em escrever alguns.