um poema me começa
e invade minha saudade inventada.
tenho um sonâmbulo amor
e as costelas lúcidas da madrugada.
- sei que isso já foi escrito em algum lugar-
sou plagiadora desde nascença.
imito paraísos e tonturas.
tenho correspondências não lidas
que ocupam toda a mesa de jantar.
-ando preferindo ser horizontal e mística.
encerro esperanças na vodka
e minha sede se derrama pela noite.
cem estilhaços me dão a mão,
e no verão,
tenho contrações
devido ao número excessivo de verbos.
qual a palavra/gesto que costura
um abcesso?
observações pertinentes a esse plágio:
não possuo óculos escuros
e antes de sair de casa,
esqueço de tirar as agonias do bolso.
*
útero gritando
desatinando pássaros
vínculos desfeitos e fundos.
meu dorso se equilibrando no horizonte.
entre as pernas, uma vertigem sem alcance.
/uma cólera clandestina me faz escura
e cortante/
estou numa primavera áspera e febril
na sucursal rotina dessa boceta que é o coração.
(minha demência).
fulgor foices fendas
é deus e satã na cama- esqueletos da fome.
é crua a alça do desejo
e dela despenco,
farta de fadigas.
¨meu útero não cabe na minha linguagem
nem nesse espaço.
(da série "poemas vermelhos")
*
facas escuras
tempestades solenes
fulgor das máscaras
a saudade morrendo debaixo de tua ausência encarnada.
ferocidade sórdida desse silêncio que despenca prematuro pelo corpo.
o estupor.
contorcendo-se nesse vazio
assassinando caridades
arranhando a melodia do dia.
corpo empoçado e crespo.
teu ânus perfumando o poço, sugando meu silêncio e meu retrato.
gozo.
cortes e buracos em vigília
testemunhas líricas e espessas dessa noite.
tripas rastejam pelos meus escombros
e galopam.
rejubilo-me incendiária
e líquida em suas mãos.
a noite morre agora,
desmemoriada,
debaixo de meus seios.
*
costurar na minha virilha
nosso enlace.
apertá-lo com as pernas nas noites
prenhas e insones.
(encontro frutífero de terrenos baldios-
benção de um deus que não reza.)
(da série "poemas vermelhos")
porque degraus e calafrios
descortinavam-se numa noite imensa e aveludada,
marquises espinhos virados,
abocanhavam-se.
por entre ausências camufladas,
subvertiam o silêncio histérico e vermelho
da tua fumaça,
a lapa,
meu lume.
(-desejo pingando-)
como um cardume hostil,
derramavam-se pelas costelas
de um estrangeiro,
bêbado e tímido,
uma sombra rasa.
(obscenidades inconstantes e mínguas vinham de tua pele)
ondas febris invadiam o terraço
de um ventre
que se esgarçava na noite funda
(esforço para voar)
sem amarras com ganância
bebia o escuro da noite,
tuas falas, nossa distância.(;;;;)
. . .
""detritos que não digerem
. . .
molhando todo o desejo que não vejo,
incorporo um calabouço a cada manhã.
tonturas e respingos (de frestas passadas)
me espetam e me possuem.
*
sim, você possui a solidez dos cadeados
o peso de uma dor surda há milênios
uma castração sem baque.
você, homem faminto que não come,
exala dogmas mortos credos insolúveis
anjos descarnados.
tudo em você é aconchego árido,
peito farpado saliva em cacos
alameda que não se consegue atravessar.
tua mácula desmancha seios e reencontros
antecipa partos e exílios
o fim da festa.
tua presença é perene mas não mofa paredes
nem me desnuda pela manhã.
tua boca tem o gosto das camas duras
tua carne é vinho, flor de cacto.
você,uma voz rascante negando todas as viagens,
um líquido estanque brincando no meu desejo.
meu dano.
imagem: Pierre Beteille
* * *
Raquel Gaio nasceu na cidade do Rio de Janeiro, é atriz, poeta e performer.Cursa o último período da Faculdade de Letras da UFRJ. Em 2011 lançou o livro “O Exercício no Mundo” (poemas) com Luis Alexandre Louzada e Denise Fraga. Foi publicada nas revistas Um Conto, Diversos Afins, Estrelas Vagabundas e Zebra, estas duas últimas pela UFRJ. Algumas de suas performances foram derivadas de sua poesia (“Retina” e “poemas vermelhos”). Mantém o blog "sensação de violeta" onde publica seus poemas e algumas imagens de seus trabalhos. Email.