A poesia de Abreu Paxe é a exposição de uma potência da memória que se expande em poemas concisos , há uma mestiçagem aqui entre a transparência de um pensamento que é capaz de perceber e comunicar uma narrativa lúcida do sentimento de deslocamento do numinoso secreto que atravessa tempos entrelaçados e o poeta faz se utilizando de imagens evocatórias de uma topologia ancestral, dotada de profunda energia, recuperando o sutil estatuto cosmogônico-naturante de certas expressões e atos cotidianos que alcançam uma dimensão etnopoética praticada e germinada, não como síntese, mas como cartografia de recuperação das raízes imanentes potencializadoras do sensível como visão e recuperação do mundo. Abaixo o poeta selecionou nove poemas entre suas escrituras mais recentes.
Marcelo Ariel
I
... enquanto dança o mar em silêncio himba era o murmúrio de um rio
ao falar... atravesso a fronteira uma floresta de imagens aquela
embala de calor seco ... vukula oh messo ... os meus olhos também os
herero de rupestres sentidos ... o deserto se desenha a criança que
junto cresce aqui o tombwa ... na verdade não se trata de um bosque
em pé, nem sentado ...
II
... as vozes deixadas litúrgicas trazem leves enxurradas as líquidas
texturas do deserto neste ambiente de oxigênio zero como cifra ... sem
chuvas aquelas árvores altíssimas forradas por sedimentos de sílica
... com vozes estridentes das mulheres ... as madeiras foram
mineralizadas ... contrastando com os sons graves dos homens ... de
floresta os esqueletos à floresta as dunas ao mar as danças ...
III
... as glândulas cerebrais eram do corpo da água essa voz que se solta
... sentado por cima da carne seca as gaiolas desse corpo ... dya
munito ... a água do corpo ajusta-se nas percepções orgânicas lenhas
secas ... a cabeça como um instrumento de problematização continua
seus sons de fogueira ... vwa mina ... gerir as dissonâncias era um
banho de água fria o corpo em vibração ... esse que pensa o corpo e a
vida dos suores ... estes existem sem palavras e chega antes de nós e
fala as línguas cerebrais da natureza ...
IV
... fumo imagens nos chifres de nsessi esse cocar de penas era briga
de galos me picotando ... makoko ou seja os galos sem chifres a ordem
de esquecimento definição dos pés ... sem contudo ter visto nisso
devagarinho a cabeça, os pés ou seja o que for que nos orientasse ao
andar ... devagar desce um cachimbo ... afinal estou a morar no mato
...
V
... a memória alheia era a covardia que cultivava ruínas azuis também
... as pedras que tenho, os bolsos que nelas germinam, aquela terra
do que faz parte ao melhor mal de se afogar ... os ruídos é todo o
nosso pesar solidárias paisagens estavam cheios de paz nesses ruídos
...kebanguilako ... um frio jantar de imagens o lugar desse fumo de
Imagens ...
VI
... eram os ritmos da vida adulta como lógica dum corpo falado em
kikongo ... cenários de quadros simbólicos e tempo do espaço do tempo
em umbundo ... são sim ritmos do rio duma infância acordada os corpos
que se unem ... sai da memória comunicativa para a memória cultural
... o desenho de uma planta um jantar cria uma imagem de si mesmo aí
mesmo ...
VII
... eu sou a minha mão ... e a uso para desenhar as árvores que
crescem em mim ... u mboka ... esse chamamento desfocada montra ... os
dentes fora de si a raiva contida em nós ... éh como se vivesse em
assentamentos de rituais de iniciação ... porque me caso hoje, as
partes destes corpos e daqueles que recebo os movimentos imaginários
... agora num só corpo o agora duma infância na vida adulta duma
árvore que se desenha ... também os ritmos dum calor tropical o ritual
nos rituais ...
VIII
... um fio de poesia o formato é uma caveira preta ... como simples
objecto de uso doméstico a meia luz os azuleijos ... conduzindo a
experiência de crânios são as formas, as imagens da cultura eram
também chaves dispersas, eram cheiros íntimos o chulé dum corpo meias
sem chulé ... a montagem no alheio de um mosaico móvel o alheio desses
outros odores verdes ainda ... a encenação dos rituais eram kimbos de
dentes um atravessar de lenhosos pés descalços ...
IX
... as árvores como corpos em troncos usados um arranjo de ritmos
desarticulados ... nkay ya dya mwini ya tungulula eh sisa ... essa
kingana é a música nevada como estepe é a abertura da música ... em
gestos e deitadas no cansaço delicadas as folhas é uma vontade de
dormir os cheiros as roupas são despidas roupas ... os ramos como
cabeças de braços estendidos, inclinadas mãos essas unidas vegetações
...
ABREU CASTELO VIEIRA DOS PAXE nasceu em 1969 no vale do Loge, município do Bembe, província do Uíge, Angola, país africano com população estimada em 22 milhões de habitantes. Angola tornou-se independente de Portugal em 1975. Paxe licenciou-se em Língua Portuguesa no Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED) de Luanda, cidade com cerca de oito milhões e meio de habitantes. É professor de Literatura Angolana no ISCED e membro da União dos Escritores Angolanos (UEA). É autor, entre outros, de A chave no repouso da porta (2003 − Prémio António Jacinto) e de O vento fede de luz (União dos Escritores Angolanos, 2007). Em 2000, foi o ganhador do prêmio “Um Poema para África”. Para ele “a poesia se realiza nos elementos que se perdem no cotidiano”