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CASÉ LONTRA MARQUES - POEMA INÉDITO

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Desenho do autor

 




Cansar os dentes na cor dos dias





Os pombos toleram nas asas a areia que um dia esteve em meus dentes. A poeira que já procurou outros olhos.
O minério. A pneumonia que envelhece depois do alambrado. Enquanto o sol amassa
a moleira
dos prédios. Levanto do asfalto a coluna destroncada pelo calor que contudo me alarga. Me agride e alarga.
Levanto
parte da camada de silêncio sobre o asfalto equilibrando
na nuca um pouco
da brita que me abrigou por instantes espessos
ou séculos
sucintos. Verões esparsos. Anos ou meses ou semanas. Semanas e não sei quantos lutos. Alvos inconsistentes. Gestos reabilitados
pelo
sarcasmo. Às vezes pela raiva
ou pelo desânimo.
Às vezes
a partir da mágoa e após o êxtase e
não
muito longe
do
pânico que a cidade
alaga tateando
mais
mundos. Os pombos que frequentam minhas hesitações. Que fecundam meus entusiasmos. Os pombos são aquilo que ainda não apodreceu em mim. O ruído das imagens
que arranho. Este ruído intransigente.
Quase
respirável. Que as imagens recobrem. Perdão.
Que
as imagens incubam no palato ou na pupila ou no pulmão ou na patela.
A
voracidade é sobretudo um ambiente, a mulher que ainda serei diz para meus rins; a voracidade nos envolve e turva, nos instaura e desestrutura (o ambiente — este ambiente — é um lugar e uma lesão ou um lugar que é uma lesão mas não só): espaço propiciador. Que perturba
o
pulso. A voracidade
,
escuta. É um ambiente: lapso — ou repositório ou espasmo — em que a vida (a montagem da vida) pode se desfigurar. Em que a vida (a modelagem da vida) é convidada e incitada/é compelida e convocada/é intimada e seduzida,
incessantemente,
a se reformular, de incêndio
em incêndio. Ou
nem tanto: de esquecimento
em
esquecimento. A voracidade é um ambiente que propicia a vida e propiciar a vida é mais do que ofertar vida à vida é mais do que oferecer formas de vida à vida que se forma propiciar a vida é também ameaçar a vida e suas formas ameaçar a vida e o que nela se forma como vida ao nos arremessar outras interrogações ou ao nos arremessar a outras interrogações a voracidade é sim um ambiente mas não qualquer ambiente a voracidade muitas vezes tão volátil a voracidade é um ambiente que nos afasta da oportunidade e até da vulnerabilidade de ter um ambiente é um ambiente que nos destina a novos ambientes e que nos impede de viver nesses mesmos ambientes isto que então nos deflagra e refuta não para de nos interrogar não para de se interrogar sobre os ambientes onde nos encontramos e construímos ou nos encontramos e colidimos ou nos encontramos e consumimos sem a possibilidade de neles viver de fato tais ambientes constituem uma contínua uma convicta conturbação impõem ou implementam quase todas as nossas desarticulações e recondicionamentos e interlocuções com catastrófica desculpa com claustrofóbica violência. Você me pega
pelo pescoço
e suspende
toda a surdez. Sem adotar nenhum delírio.
Você
me pega pelo pescoço e
estende tudo
o que em mim é surdez. Sua
língua
ilumina os vértices do labirinto. Os vértices
ou túmulos. Os vértices ou úteros
do labirinto
onde os ecos se chocam. Onde os ecos nos cortam
e penduram e desossam.
Os ecos das vozes
que vestimos. Que revestimos.
Os
ecos são as vibrações a que voltamos nesta manhã.
E toda
manhã é infinitesimal. Como os furos.
Como os dígitos
que a fuligem tatua no osso.
Toda
manhã agora é este areal. Brisa ou
fumaça
que rola de boca em
b
oca e depois
faz falta. O troco. O tranco
e
o troco da gasolina. A postura no escritório. A
posição
do computador ou a altura da cadeira onde renascemos
para a hipocondria com
um sorriso incompetente mas
tomara
que tragável. Toda manhã
enfim
é um litoral. E cada memória
manhã
nenhuma. Máquina
fática
ou mímica
intestinal. Aperfeiçoando
o furor
com alguma
afasia.





Casé Lontra Marques nasceu em 1985. Mora em Vitória, Espírito Santo. Publicou Enquanto perder for habitar com exatidão (2014), Saber o sol do esquecimento (2010) e Mares inacabados (2008), entre outros. 
Reúne o que escreve em caselontramarques.blogspot.com.br.












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