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5 poemas de Fiori Esaú Ferrari

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Marcel Fernandes

A vocação e a mesa

A longa mesa de madeira
sombreada de quietude
no calor da infância
impunha inteira
a rotação da tristeza.

Hélices giravam a flor
do menino louco
que fechava os olhos
pra construir palácios
equinociais de brilhantes.

Assumia velocidades.
Enfrenava a dor.

O cavalo aparteando as crinas,
o fogo das narinas,
o lombo sextavado
de tatuagens hídricas.

O menino louco de ausentar
paz cumpria de detalhes
cada vazio do dia.

Vendia princípios
discricionários
de alegria.

Certa vez contou aos seus
uns descomedimentos.

Tiraram-no do céu,
puseram-no na mesa.

Foi quando descobriu o lápis e o papel.


O cesto

A canção vem
como quisesse
recompor o quarto.

A mão do pai
era um breve
aceno.

A mãe sussurrava
suas dores.

Trançava
os carinhos
num cesto.

Domava o tempo
na mandala,
o cosmos
era ali
dominado arquétipo.

Ela cantava timidamente
aos domingos.

Um terço quase à mão,
o menino do lado
procurando o fundo
e o fundo talhado
de certas texturas
e a vida dura,
a vida dura.

Ela cantava timidamente
aos domingos. Ela existia.

A interdição da lucidez,
a utilidade dos dias,
o lucro dos bancos,
o riso cainho dos bancos.

No domingo,
o cesto era arte
e o delírio,
o lenço na cabeça,
rosas, espirais,
ondulações
e corpos dizendo dança.

A flauta fazendo uma música
de muitas curvas.

E o pai num breve lenço de adeus.

Ela tirava do cesto
o ócio com uma delicadeza
de colibri
e se espalhava
diante do menino que sorria,
que desmanchava sua prisão,
sua timidez.

E o mito levantava-se das águas
sem fé alguma.

Talvez, por isso,
tenham fundado Deus.

Chema Madoz

Uma grande poeta

Eu sei passar invernos sobre aquarelas.
Eu trago das nuvens frias
as cinzas que na quarta
cingem suas cabeças.

Eu sei contar os passos
dessa via.
A cotovia cantou.

Pra arte abstrata,
pro poema concreto,
pra melíflua lua
na metáfora prostituta.

Todo grande poeta
é analfabeto.

Todo poeta seminal
é sem nenhum teto.

O poeta é o animal
que não aprendeu
palavra.

Eu sei articular
a dor ao  símbolo.

Foi quando eu aprendi a trair
a vida
e fez-se o primeiro verso
e foi minha primeira covardia.

Tenho frutas no cesto
e um sabor
de desencanto.

Minha avó acontecia
num só instante
e depois doía nos olhos.

Tenho saudades.

Ela não sabia ler
nem escrever.

Mas doía nos olhos
com amor.



Meu povo

Era pra eu me lançar
atado de azuis
e conchas nos rins,
era, sim, um pouco
de destino,
completar o signo
no papel
e num ato de desespero
ele se partir,
cerâmicas ancestrais,
cada letra num caco,
o ladrilho dos passos
pequenos do meu povo.

Dá uma paz pisar os pés nus no chão.

Meu povo me enamora
e me emociono com seu jeito
na passagem da vida,
meu povo vestido
de mantos,
a poesia na distribuição de renda,
meu povo que masca fumo
na tela do iPhone.

Era pra eu me lançar
aturdido
como quando Portugal
adormeceu pensando
Deus.

Sou o ato de ser brasileiro.

Amo, amo meu povo
que estendeu seu corpo
sobre o campo
como a rede mais suave
da morte.

Esses campos onde o vento
é dono, estou achado
e abro os braços
e canto um hino nacional.

Conquisto o império das flores
mas não colonizo nenhum desejo.



Agrafia

Eu não suportaria
viver entre escritores,
conversar com escritores,
entender o discurso dialógico
dos escritores,
a sua distinção
tão insuportável,
a sua petulância em se
auto proclamarem
escritores.

Eu não suportaria
o seu olhar crítico
sobre a obra do outro,
seu amor cheio de autopiedade
e a exibição erótica
da seu palavreado
com pretensão de arte.

A articulação dos escritores
me faz rir.

Eu não compreendo
a inteligência capaz
de se posicionar sobre
tudo,
a sagacidade de se exibir sobre
tudo,
eu não suportaria
a inteligência aguda
que os escritores têm.

Não.
Eu não sei dizer nada,
não falo outra língua
senão aquela que me dói,
sou adido de um canto de galo
invadindo a tarde,
e a crítica literária
é um eco distante do Sócrates
deitado sobre o catre
quando Platão inaugurou
a morte do mundo feliz.

Eu não suporto o português culto dos escritores!
Nem suas traduções, nem suas tradições.

Eu sou avesso ao livro
e me entrego mais
às asas do passarinho
que marcou a janela
do apartamento
e proibiu por um instante
o poema.

Um instante eterno
em que a digitação bloqueada
foi o útero
e o paraíso enfim reencontrado.

Quando seu Ramiro olhou
a mancha interna nas patas
da mula disse pra mim:
são uns zóiodi vê a noite.

Nenhum artista da palavra
olharia assim.

E se olhasse magoaria o mundo
quando grafasse.

Meu filho de 4 anos
escreve seu nome.
Sua caligrafia treme.

Treme porque quer voar.

As crianças caem
quando,
aos 4 anos,
escrevem sozinhas seu nome.

Um abismo.

A escola vai saber depois bem cavar profundidades.

Por isso fico triste.


Eu aguardarei com saudades
o dia em que calaremos todos.

E o pão e a água
vão ser nossa melhor escrita.

E a vida vai seguir
seu rumo de esquecimento
suave como quando éramos ágrafos.

Fiori Esaú Ferrari nasceu em Itapetininga. É professor de Literatura pela Uneafro e professor efetivo de Língua Portuguesa pelo município de São Paulo. Em 2016, lançou, pela Editora Penalux, seu primeiro livro, Tensão Superficial da Poesia.


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