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Marcel Fernandes |
A vocação e a mesa
A longa mesa de madeira
sombreada de quietude
no calor da infância
impunha inteira
a rotação da tristeza.
Hélices giravam a flor
do menino louco
que fechava os olhos
pra construir palácios
equinociais de brilhantes.
Assumia velocidades.
Enfrenava a dor.
O cavalo aparteando as crinas,
o fogo das narinas,
o lombo sextavado
de tatuagens hídricas.
O menino louco de ausentar
paz cumpria de detalhes
cada vazio do dia.
Vendia princípios
discricionários
de alegria.
Certa vez contou aos seus
uns descomedimentos.
Tiraram-no do céu,
puseram-no na mesa.
Foi quando descobriu o lápis e o papel.
O cesto
A canção vem
como quisesse
recompor o quarto.
A mão do pai
era um breve
aceno.
A mãe sussurrava
suas dores.
Trançava
os carinhos
num cesto.
Domava o tempo
na mandala,
o cosmos
era ali
dominado arquétipo.
Ela cantava timidamente
aos domingos.
Um terço quase à mão,
o menino do lado
procurando o fundo
e o fundo talhado
de certas texturas
e a vida dura,
a vida dura.
Ela cantava timidamente
aos domingos. Ela existia.
A interdição da lucidez,
a utilidade dos dias,
o lucro dos bancos,
o riso cainho dos bancos.
No domingo,
o cesto era arte
e o delírio,
o lenço na cabeça,
rosas, espirais,
ondulações
e corpos dizendo dança.
A flauta fazendo uma música
de muitas curvas.
E o pai num breve lenço de adeus.
Ela tirava do cesto
o ócio com uma delicadeza
de colibri
e se espalhava
diante do menino que sorria,
que desmanchava sua prisão,
sua timidez.
E o mito levantava-se das águas
sem fé alguma.
Talvez, por isso,
tenham fundado Deus.
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Chema Madoz |
Uma grande poeta
Eu sei passar invernos sobre aquarelas.
Eu trago das nuvens frias
as cinzas que na quarta
cingem suas cabeças.
Eu sei contar os passos
dessa via.
A cotovia cantou.
Pra arte abstrata,
pro poema concreto,
pra melíflua lua
na metáfora prostituta.
Todo grande poeta
é analfabeto.
Todo poeta seminal
é sem nenhum teto.
O poeta é o animal
que não aprendeu
palavra.
Eu sei articular
a dor ao símbolo.
Foi quando eu aprendi a trair
a vida
e fez-se o primeiro verso
e foi minha primeira covardia.
Tenho frutas no cesto
e um sabor
de desencanto.
Minha avó acontecia
num só instante
e depois doía nos olhos.
Tenho saudades.
Ela não sabia ler
nem escrever.
Mas doía nos olhos
com amor.
Meu povo
Era pra eu me lançar
atado de azuis
e conchas nos rins,
era, sim, um pouco
de destino,
completar o signo
no papel
e num ato de desespero
ele se partir,
cerâmicas ancestrais,
cada letra num caco,
o ladrilho dos passos
pequenos do meu povo.
Dá uma paz pisar os pés nus no chão.
Meu povo me enamora
e me emociono com seu jeito
na passagem da vida,
meu povo vestido
de mantos,
a poesia na distribuição de renda,
meu povo que masca fumo
na tela do iPhone.
Era pra eu me lançar
aturdido
como quando Portugal
adormeceu pensando
Deus.
Sou o ato de ser brasileiro.
Amo, amo meu povo
que estendeu seu corpo
sobre o campo
como a rede mais suave
da morte.
Esses campos onde o vento
é dono, estou achado
e abro os braços
e canto um hino nacional.
Conquisto o império das flores
mas não colonizo nenhum desejo.
Agrafia
Eu não suportaria
viver entre escritores,
conversar com escritores,
entender o discurso dialógico
dos escritores,
a sua distinção
tão insuportável,
a sua petulância em se
auto proclamarem
escritores.
Eu não suportaria
o seu olhar crítico
sobre a obra do outro,
seu amor cheio de autopiedade
e a exibição erótica
da seu palavreado
com pretensão de arte.
A articulação dos escritores
me faz rir.
Eu não compreendo
a inteligência capaz
de se posicionar sobre
tudo,
a sagacidade de se exibir sobre
tudo,
eu não suportaria
a inteligência aguda
que os escritores têm.
Não.
Eu não sei dizer nada,
não falo outra língua
senão aquela que me dói,
sou adido de um canto de galo
invadindo a tarde,
e a crítica literária
é um eco distante do Sócrates
deitado sobre o catre
quando Platão inaugurou
a morte do mundo feliz.
Eu não suporto o português culto dos escritores!
Nem suas traduções, nem suas tradições.
Eu sou avesso ao livro
e me entrego mais
às asas do passarinho
que marcou a janela
do apartamento
e proibiu por um instante
o poema.
Um instante eterno
em que a digitação bloqueada
foi o útero
e o paraíso enfim reencontrado.
Quando seu Ramiro olhou
a mancha interna nas patas
da mula disse pra mim:
são uns zóiodi vê a noite.
Nenhum artista da palavra
olharia assim.
E se olhasse magoaria o mundo
quando grafasse.
Meu filho de 4 anos
escreve seu nome.
Sua caligrafia treme.
Treme porque quer voar.
As crianças caem
quando,
aos 4 anos,
escrevem sozinhas seu nome.
Um abismo.
A escola vai saber depois bem cavar profundidades.
Por isso fico triste.
Eu aguardarei com saudades
o dia em que calaremos todos.
E o pão e a água
vão ser nossa melhor escrita.
E a vida vai seguir
seu rumo de esquecimento
suave como quando éramos ágrafos.
Fiori Esaú Ferrari nasceu em Itapetininga. É professor de Literatura pela Uneafro e professor efetivo de Língua Portuguesa pelo município de São Paulo. Em 2016, lançou, pela Editora Penalux, seu primeiro livro, Tensão Superficial da Poesia.