A palavra não tem a menor possibilidade de expressar alguma coisa. Tão logo começamos a pôr nossos pensamentos em palavras e frases, tudo sai errado.
Marcel Duchamp
pergunta n° 1
A pureza de uma flor é dada?
pergunta n° 2
O odor do sangue é dada?
pergunta n° 3
O fazer desses senhores dadaístas, tão distante no tempo, ainda é capaz de causar incêndios?
pergunta n° 4
A música, essa arte tão pouco dada a iconoclastias, pode ser dada?
pergunta n° 5
Eric Satie é dada? Provavelmente, mas não seria mais correto afirmar que ele influenciou mais do que foi influenciado? Quando surge o dadaísmo, ele já é um compositor maduro, completamente dono de sua linguagem.
Satie foi o único integrante de uma igreja que ele próprio fundou e escreveu as “Três peças em forma de pêra” (que, na verdade, eram sete), a composição com um dos nomes mais estranhos da história da música, quando os dadaístas ainda eram crianças de colo: chistes que combinam vida e arte. Teria sido Satie um protodada?
pergunta n° 8
E Cage? Quanto há de dada em Cage? A iconoclastia, o gosto pelo acaso, a renuncia à expressão, vida e arte tornando-se uma só coisa, materiais inusitados – qualquer material é um material possível: premissas dadaístas que povoaram a poética de Cage. E, não por acaso – difícil imaginar palavra mais importante que “acaso” ao falar de Cage –, Satie e Duchamp foram seus heróis.
Algo dadaísta está presente em Cage, Kagel e em boa parte dos compositores de vanguarda, nos compositores do Fluxus e em tantos outros – incluso Peter Ablinger (para citar alguém da atualidade) –, ainda que o “dadaísmo clássico”, em toda sua ingenuidade – falo dela com admiração, não com ironia –, tenha evaporado. No entanto, as artes da busca não existiriam sem ele. O dadaísmo está presente hoje, como Schoenberg, este homem impregnado de harmonia, está presente em qualquer obra feita apenas de ruídos.
Assim como o vermelho da flor habita o sangue?, eu pergunto.
pergunta n° 13
É importante colocar que nós, músicos, somos afeitos a sistemas. Sempre. Sempre?
pergunta n° 21
Como se comportariam os dadaístas hoje, teriam um lugar na Terra? Quando as convenções desapareceram e tudo foi despedaçado. Após Auschwitz, Hiroshima, Kolimá e Chernóbil. Eles não pareceriam desavisados, crentes em um papel transformador da arte? Mas não haveria neles uma força extraordinária? Essa força que forja o novo?
pergunta n° 9
A imagem de uma arte no extremo, própria do dadaísmo, não seria capaz de incutir um pavio no mundo conformado das salas de concerto, dos títulos estéreis da Universidade, das exposições que nos causam tédio e/ou asco, da literatura de forma e caligrafia redondinhas?
pergunta n° 10
“O cheiro do sangue humano não desgruda seus olhos de mim”, Francis Bacon citando Ésquilo.
pergunta n° 11
Alterar os números das perguntas desta fala utilizando uma seqüência de Fibonacci é dada? Ou ainda, não responder absolutamente coisa e continuar a perguntar, perguntar, perguntar e fazer sete perguntas dentro da mesma pergunta? Qual o significado disto? O que pretendemos? Um Koan? Uma composição dada? Um poema?
pergunta n° 12
“As palavras adquirem seu significado verdadeiro e seu lugar certo na poesia”, disse Duchamp. A difícil tarefa de “poetizar” um objeto qualquer, por mais absurdo que este seja, não foi uma conquista dadaísta? Nesse sentido, suas obras não assemelham-se aos Koans? E ainda, não foram eles “videntes” como nos ensinou Rimbaud?
pergunta n° 34
Uma roda de bicicleta é um Koan. Um poema feito de recortes aleatórios de jornal é um Koan. Uma composição prenhe da matéria do silêncio é um Koan. Uma coreografia talhada nas impossibilidades do corpo é um Koan.
Não aprendemos com os dadaístas que a arte aspira ser Koan?
pergunta n° 14
A obra de arte tem o poder de alterar a trajetória da luz?
pergunta n° 15
Os Sex Pistols conheceram os dadaístas?
pergunta n° 16
Quais são os limites para destruir uma linguagem sem que ela nos destrua?
pergunta n° 17
Onde fica a fronteira que separa a arte da própria barbárie à qual ela se opõe, ou deveria se opor?
pergunta n° 18
Os dadaístas conheceram esta fronteira e isto faz deles artistas admiráveis. Nós a conhecemos?
pergunta n° 19
Paul Celan, envolto nas memórias da destruição, concentrado na batalha silenciosa com a língua dos açougueiros que mataram sua família, conheceu esta fronteira. Nós a conhecemos?
pergunta n° 20
Francis Bacon, afeito ao “confronto com a carne”, nas suas palavras, “essa verdadeira escoriação da vida em estado bruto”, conheceu esta fronteira. Nós a conhecemos?
pergunta n° 55
Ingmar Bergman, dissecador dos relacionamentos humanos e pregador da solidão e do exílio, conheceu esta fronteira. Nós a conhecemos?
pergunta n° 22
Pina Bausch, que cometia “erros tão bonitos” ao criar seus Koans do corpo, conheceu esta fronteira. Nós a conhecemos?
pergunta n° 23
Helmut Lachenmann, compositor que instaurou uma nova fisicalidade nos instrumentos e nos arrancou do lugar confortável da escuta para nos arremessar em espaços inauditos, às vezes, dotados de grande violência, conhece esta fronteira. Nós a conhecemos?
pergunta n° 24
Imre Kertész, dono de tratados sobre a “felicidade nos campos de concentração”, conheceu esta fronteira. Nós a conhecemos?
pergunta n° 25
Como opor-se às pilhas de corpos sem que nos tornemos também pilhas de corpos?
pergunta n° 26
Esta não seria uma questão essencial, a criação de uma obra de arte capaz de se opor a um statu quo dilacerante, mas que, na qual, não transborde o horror? Sem que o horror nos sufoque?
pergunta n° 27
Assim fizeram os dadaístas? Questionaram a bestialidade da guerra sem que se tornassem panfletos ou bestas?
pergunta n° 28
Assim fizeram os dadaístas? Nem sublimação total, nem dejeto?
pergunta n° 29
Assim fizeram os dadaístas? Nem a pureza da flor, nem o odor do sangue?
pergunta n° 30
Não seria esta a morada da poesia, um espaço humano? Algo entre?
pergunta n° 31
Tarkóvski diz, “só há uma maneira de conceber o cinema: poeticamente.” Ainda que cheguemos à conclusão de que o dadaísmo e a música nunca estiveram diretamente ligados, esta revolta que completa um século não nos instigaria a conceber poeticamente a música? Uma música que abra os nossos ouvidos e que afronte sempre a barbárie? Uma música nem flor, nem sangue?
pergunta n° 32
Contra o horror, a poesia não seria uma máquina possível?
pergunta n° 33
Algo vai muito mal nos dias de hoje. Como diz Kertész, “concordamos que algo terrível está projetando seu sinal. Em tudo e em toda parte se vêem prenúncios do horror. A linguagem racional nem se aproxima desses prenúncios. Deve-se usar a linguagem antiga, a da Bíblia, que conhece Satanás e sabe do fim do mundo.”
Não sei dizer se os dadaístas conheceram horror igual ao nosso, se a experiência deles foi pior ou melhor. Felizmente, não existe uma escala para medir a desgraça humana. O que interessa é que eles foram capazes de uma resposta.
(fala#5, com Marta Soares e Kleber Damaso, DADASPRING. 29/09/2016, Goiânia-GO)
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REFERÊNCIAS
Hogue, Raimund. Weiss, Ulli. Bandoneon, em que o tango pode ser bom para tudo? - Texto e fotos sobre um trabalho de Pina Bausch. São Paulo: Attar Editorial, 1989.
Kertész, Imre. Eu, um outro. São Paulo: Editora Planeta, 2007.
Kertész, Imre. Sem destino. São Paulo: Editora Planeta, 2003.
Maubert, Franck. Conversas com Francis Bacon. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2010.
Tarkovski, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
Tomkins, Calvin. Duchamp, uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005.