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4 POEMAS DE PAULO MOREIRA

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Vida em degelo


uma aresta gigantesca de gelo
emerge do fundo ermo do mar
rasga com o corpo o ar frio e seco
ajusta-se ao seu leito desigual
encara o sol da meia-noite indiferente
flutua dura e cega aresta de água e sal
dissolvendo-se em regresso
é só um fantasma banal
do nosso longo epílogo lento
uma imensa lápide em branco
um Titanic às avessas
não há nada
por trás do seu silêncio



Belo Horizonte de Pedra


De onde veio essa pedra
que o asfalto agora afoga?

Do Acaba Mundo, Carapuça
Prado Lopes, Lagoinha,
e o Morro das Pedras.

Quem, lá do alto,
perfurava blocos
no Acaba Mundo, Carapuça
Prado Lopes, Lagoinha,
e o Morro das Pedras?

Quem, logo abaixo,
broqueava rocha
no Acaba Mundo, Carapuça
Prado Lopes, Lagoinha,
e o Morro das Pedras?

Quem, logo ao lado,
tinia a marreta
dos cavoqueiros
nos blocos de pedra
de cor igual?

Quem catava com a alavanca
e puxava para a prancha
tanta pedra
tão manchada de suor
no Acaba Mundo, Carapuça
Prado Lopes, Lagoinha,
e o Morro das Pedras?

Quem, no telheiro,
desbastava os blocos,
retinindo os picões
no Acaba Mundo, Carapuça
Prado Lopes, Lagoinha,
e o Morro das Pedras.

Quem, na ferraria,
reapontava as brocas velhas,
cansadas da guerra
no Acaba Mundo, Carapuça
Prado Lopes, Lagoinha,
e o Morro das Pedras?

De onde veio essa pedra
que o asfalto agora afoga?

Do Acaba Mundo, Carapuça
Prado Lopes, Lagoinha,
e o Morro das Pedras.

De onde veio essa saudade
do que nunca aconteceu?

Do Acaba Mundo, Carapuça
Prado Lopes, Lagoinha,
e o Morro das Pedras?

Botelhaleixo
atirem o primeiro
pássaro de pedra
atirem aos porcos,
farelos que cantam
pérolas que ardem
atirem troços vivos de pano
atirem o cheiro de terra
aos nossos mortos atirem
os riscos brancos de um poemanto
atirem letras brancas em pano preto
no chão preto na luz branca
atirem metades de silêncio
num poeta sem corpo
outra pessoa, que não sabe quem
que carrega vários mortos nas costas
pronto para o silêncio maduro,
que reproduz em vão o silêncio
que tange o sino dos outros
atirem nele esses dois mineiros
duas vezes atirem os dois em mim



Seis variações sobre nós dois


… el Océano ejemplificaba 
tangible y espetacularmente 
la hostilidad y extrañeza de la realidad cósmica y, 
en cuanto límite de la Isla de la Tierra, 
no le pertenecía al mundo y, 
por lo tanto, no se le consideraba 
como susceptible de posesión juridica 
u objeto para el ejercicio de la soberania de los príncipes.
Edmundo O’Gorman


I

Mar alto, cego, indiferente,
digere um punhado de pó;
dissolve o grão, consome o seco,
desmonta num sopro
a oferta do escolho.

II

Incham os músculos do rio,
rasgam as margens de lodo,
caçam o cascalho da beira,
abraçam, sufocam o saibro,
enterram farpas de pedra
no campo santo de seixos,
silenciosa fábrica de limo.

III

A chuva fina insiste
e encharca a laje em silêncio,
se enfia pelos cantos mais duros,
infiltra o reto, corrói o plano,
cava veios, apodrece a prazo
a própria catacumba de calcário.

IV

Mudo, baço, manso, obscuro lago,
dorme inerte no estio do inverno,
no berço cercado de serras vermelhas;
sonha, se amolda, contorna
amorosamente
enquadrado no minério
de ferro da serra.

V

A poça esquecida
no alto do barranco,
humilde se aterra
nos braços rachados do barro;
se seca no sol,
se mata no escaldo
e evapora livre
de si mesma, afinal.

VI

Vira a noite a madrugada;
o orvalho vaporoso
desce da nuvem cinzenta
e pousa na pedra.
Cobre de prata a pedra.
Esperam os dois,
pacientes, o calor
gentil do sol do inverno.



Hino do Filho de Sétimo Dia 


"¿Qué es la vida? Un frenesí.
¿Qué es la vida? Una ilusión,
una sombra, una ficción,
y el mayor bien es pequeño;
que toda la vida es sueño,
y los sueños, sueños son." 
– Pedro Calderón de la Barca, 'La vida es sueño'


Saio cedo,
não me importa o frio,
nem me incomoda o medo.
Sempre fui assim:
esse homem esquisito
que ninguém não podia entender.

Desastrado improviso,
obra má, de má argila,
sou também irmão
e seu semelhante.

Meu pai já morreu;
o que ele me deu
e o que ele me tirou
inteiram a fôrma
exata da minha dor.

Meu pai aviava,
meticuloso e ardente,
o elixir da longa morte
que hei de tomar
todo dia de manhã,
daquela segunda-feira
há sete dias passada
até o resto da vida.

Começou a temporada de caça!
Chegou minha hora!
Chegou minha vez!
Frenesi ou ilusão,
sombra ou ficção:
todos os meus sonhos
dançam sua morte
com os pés no chão;
são cinzas, cabem agora
na palma da minha mão!


foto: vista aérea noturna de Belo Horizonte/ MG

*    *    *


Paulo Moreira nasceu 33 anos depois da primeira edição de Raízes do Brasil e continua a viver ditado por uma estética de fundo emotivo. É sua maior qualidade e seu maior defeito. Nasceu no Rio de Janeiro e cresceu em Belo Horizonte. Sofre de depressão crônica e torce pelo Flamengo. Publicou um livro de poesia tacanho do qual se arrepende. Ama Minas Gerais profundamente e por isso detesta qualquer discurso babão sobre mineiridade. Idem sobre a cidade do Rio de Janeiro. É apaixonado pelo México,  principalmente por causa de Juan Rulfo. Acaba de publicar um livro sobre os contos de Faulkner, Guimarães Rosa e Rulfo pela editora UFMG, sobre o qual deitou sangue, suor e lágrimas. Está escrevendo um livro sobre Mexicanos e Brasileiros que se interessaram pelo país dos outros. Viveu em Santa Bárbara na Califórinia e vive há sete anos em New Haven, duas faces completamente diferentes do mesmo país. Trabalha na universidade de Yale, onde desfruta de uma biblioteca de sonhos, onde encontra tudo o que quer e tromba com tudo o que precisa. É casado há vinte anos e tem dois filhos. Ama os três hoje mais intensamente do que nunca. Amem! Leia seu blogue aqui.




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