MONTUROS I
1.
percorria a noite atrás dos olhos da coruja
espelho aceso que de sonhos se nutria
bebia sêmen secretado de árvores antigas
água doce condensada na superfície fria das folhas
deitava dentro do útero as raízes do carvalho
árvore com a idade de cem homens
abençoado arquétipo que nos devora
2.
o dia se abria
e com ele
flores tingidas de ouro
e cabelos em chamas
uma massa incandescente
crescendo lá fora
dissolve as sombras
de dentro da casa
como o primeiro raio de sol
se alojando nos olhos da formiga
3.
o mar chicoteia as rochas com suas cadeias de sal
tenho uma bomba crescente
no epicentro de minha pélvis
onde cavalos correm
com as bocas cheias de pregos
e os cascos afiados em estrelas
4.
vejo a lua escalando nuvens negras
lago de luz refletido nas lâminas de grama
de seu ventre nasce o touro
escorado nos limites da paisagem
com seus chifres de bronze
forjados em vulcões adormecidos
touro que treme o chão
com a fúria minando das ventas
trovão na garganta zunindo
quadrúpede sustentáculo do mundo
5.
na flauta do homem se esconde
a nomenclatura do vento
e suas flechas odoríficas
cantando a boca por dentro
cantando os cactos inchados de alcaloide
os insetos vermelhos de veneno
os pequenos mamíferos
e seus frágeis ossos
as fezes da cutia
que semeiam florestas
a putrefação das folhas
impregnando o ar que inunda
o pulmão de pólen do lobo-guará
6.
os professores universitários
professam o nada
o motor a combustão
a casa de praia
a conta bancária
o câncer de pulmão
e morrem sozinhos
abarrotados de coisas
o carro na garagem
a casa arrumada
a grama aparada
7.
e os girassóis continuam a brotar
sob o solo
quente
e a energia que liberam quando saem da terra
tem a força de mil hidrelétricas
e os gladíolos são tíbias de seda
com bandeiras vermelhas
tremulando ao vento.
8.
deuses insossos
sucumbem de noite
não suportam o paganismo da lua
a eletricidade dos sonhos
OS ANIMAIS COPULAM COM TODA FORÇA SEM PEDIR LICENÇA AOS SÍMBOLOS
os animais copulam com toda força sem pedir licença aos símbolos
vozes claras violentam os ruídos das águas
peles de prata armazenam veias rubras como a romã e seus caroços
encapsulados pelo mais doce vinho
fetos boiando em placentas maturadas por anos
em tonéis seculares de delicada artesania
úteros nada nos impede de entrar na película que circunda a matéria
densa de licoroso suor
se morre a manhã
toda sombra do mundo pode romper a casca
e ser cuspida pra fora do casulo
em direção às esquinas e seus desfiladeiros
por onde deslizam as mais belas travestis
esculpidas em mármore
ah suavidade veloz que incendeia a noite
amazonas selvagens correndo contra o vento
rainhas dos bosques
frutos suculentos do sol
e da lua
heliogábalo poeta
sentado sobre a Pedra Negra
mordendo a doce maçã
às portas do paraíso.
OS HOMENS LAMBIAM SUAS FERIDAS VAZADAS
os homens lambiam suas feridas vazadas
delicadamente
a hemorragia leitosa
que alimenta a criança estancada na água
curva como um arco
tocando a face do sonho
com dedos manchados de luz
a treva se contrai como a musculatura da noite
e seu buque de mato molhado
a sombra congela
sob a respiração geométrica da coruja
com a lua acesa
dentro dos olhos
como em uma tempestade de Turner
o mar,
mãe - abismo,
engole os seres
para depois vomitá-los,
transformados
enquanto um deus agrário
canta pro sol,
seu reflexo,
“eu sou a substância do céu,
o orvalho das nuvens”.
OS RAIOS ATRAVESSAM A NOITE COM SUAS CABELEIRAS BRANCAS
os raios atravessam a noite com suas cabeleiras brancas
fervendo o odor das árvores na floresta vermelha
cada pedaço das cores ampliado com o toque de dedos selváticos
boca que dorme dentro da boca e grito estanque na rocha que tudo draga
vi o canto de luz que ressoa ao longe
fôlego demoníaco que enlouquece os cavalos e derruba estrelas
vi como o lobo veste seu manto de sombras e dilacera
o couro mole da corça filhote
e o olho morto brilhando ainda
o reflexo da mãe ao longe correndo contra a chuva
sentindo na língua o amargor metálico da chuva
a febre fermentada nas entranhas do silêncio
madeiras negras retorcidas contra o céu negro
estalam como ossos crepitando na fogueira
aqui tudo renasce no piscar de olhos do colibri
o sol se lança alto em chamas
com as garras de ouro abrindo nuvens
neblinas e montanhas carbonizadas
varando a gaivota e seu melancólico vôo
atingindo o chão em cheio
os animais dormentes e a hipnose das flores
despertas com o rugido de mares eletrocutados
as árvores pendem com o peso dos frutos
inchados de açúcar
a terra se aquece como o núcleo do planeta
e sua catedral de fósseis
os rios lavam os peixes
fundidos nas pedras
enquanto o sol
cresce dentro da carne
e amadurece o dia
com sua coroa de fênix
BOSQUÍMANO COM A FLAUTA NO SANGUE
bosquímano com a flauta no sangue
na garganta mágica
dorme o som
de todas as árvores
e rios submersos
sob a pele de ouro
o magma que nutre os animais rochosos
com o deserto entranhado na carne
e músculos monolíticos
homem que caminha
com as plantas
dos pés
no chão
os dedos abertos em asas
vorazes e falantes
porque na areia
toda pegada é seu idioma
e cada raiz
fonte de água infinita
A ADAGA ATRAVESSA A BOCA DA PANTERA
a adaga atravessa a boca da pantera
lucífera ponta de ossos
cravada nas costas da gazela
sua malha molhada terra
nutre a pegada da paineira
dedilhado vento
com dedos de algodão
abelhas fazem mel na cabeça do urso pardo
crânio limpo por formigas famintas
abraçoa pedra prenhe de calor
imensa como um ovo alçado ao céu
voo fossilizado
na ave que se devora
eu sou um cervo
uma roseira ampla
árvore que renova seus galhos
e deita raízes
gritando labaredas contra o abismo
dentro do sono
eu crepito como a chuva crepita
ao tocar a terra
com a língua molhada de olhos
e a barba crespa de hera
por isso fujo dos grandes monumentos
mortos
do herói que se ergue entre a multidão
como um deus de argila
sólido e imutável
atolado no próprio excremento
por isso me deito
na umidade grávida do caracol
lua que mostra e esconde seus chifres
e molho os pés rachados
nos girassóis
cujo pólen
são tempestades solares
e a mão toda mão
enterrada no barro
colhendo orvalho na noite
e doce
a lua se abre com seu véu branco
e dança sobre as cabeças pesadas
de sangue e chumbo
do homem cinza
cinzelado no joelho dos deuses
que assassinou
de noite
o menino sonha
sempre comigo
estancado na pele porosa do sono
nas paredes da respiração
de noite
o menino bebe
meu sêmen
coagulante
e gesta a si mesmo
em enorme cântaro de vidro
aquecido pela febre das árvores
embebido na treva que se move
na erva que se renova
quando o sol, o ar, o som da seiva
nos atravessa cada poro da pele
como flechas de luz varando a carne
ou estrela explodida dentro do corpo
sob a chuva as aves pousam
nas hastes das camélias
equilibram-se nas hastes
que sustentam o vento
e fabricam o fogo
e fabricam a língua
crisálidas iluminadas
borboletas expandem suas asas
bombeiam sangue pelas veias
ouçam a voz dos troncos
tocados pela tempestade
e ossos elétricos
minando do céu
sou uma caverna
uma música sísmica
sou um idioma extinto
pregado no útero rochoso
da terra.
imagem: Dariusz Klimczak
* * *
VINÍCIUS LIMA (Londrina, Paraná, 1977), é anarquista, jornalista, tradutor e antipoeta. Publicou de forma independente as plaquetes Fluxo Voz (2007), Visão Túnel (2008), Nigredo (2009), e o livro Geometria do Grito (2009). Traduziu Nicanor Parra (A Batalha Campal & Outros Poemas), Leopoldo María Panero (Dionysos), Alejandro Jodorosky (No Basta Decir), Carlota Caulfield (O livro dos 39 Degraus) e Marosa di Giorgio (La Guerra de los Huertos). Roteirista e Diretor do curta-metragem Útero, de 2009. Praticante de Agricultura Agroecológica e Jardinagem Libertária. Contato.