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PÁDUA FERNANDES POR LEONARDO D'ÁVILA

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O lado mais cruel de uma língua
Resenha de
FERNANDES, Pádua. Cidadania da bomba. São Paulo: Patuá, 2015.

Leonardo D’Avila

Cidadania da bomba, livro de contos publicado pela editora Patuá e recentemente ganhador do prêmio Guavira, proporciona um realismo cuja força não reside em imagens comovedoras, mas, ao contrário, no desconforto que proporciona em termos de linguagem. O leitor preferiria não ter lido as ironias sobre a verborragia dos meios de comunicação da atualidade. Também preferiria não ter encontrado tantas alusões à violência paraestatal em textos que seriam melhor assimilados se pudessem ser considerados “meramente literários”. Mas esses e outros detalhes que incomodam no último livro de Pádua Fernandes nunca oferecem trégua e, por isso, à medida que os contos de Cidadania da bomba se sucedem, a narração se torna cada vez mais fria e técnica, em um esforço de sintetizar o indizível. Verdadeiras tragédias são intercaladas como anedotas, transformando assim o que pareceria um livro de realismo urbano em algo mais próximo ao ensaio especulativo, do qual o leitor se torna copartícipe com a complacência de um dissecador ou com a evasão de um escolástico.
Uma das passagens que mais pode sustentar essa hipótese se dá em “Contos da mesa”, quando uma série de imagens violentas da perda de membros do corpo são reoperacionalizadas de uma maneira absolutamente cruel, porém transformando-se em especulação, revelando perguntas de teor metafísico. Questiona-se o narrador, sobre cortar ou não a mão do amigo: “Como tocar a realidade com dedos fatiados? Ou melhor: como não tocar a realidade com dedos fatiados? Melhor ainda: como não tocar várias realidades com os dedos fatiados? Ao menos uma para cada fatia?” (p. 29) Pádua, que compôs a Comissão de Verdade do Estado de São Paulo, sabe muito bem que os torturadores tinham nos dedos uma das partes mais preciosas para se manipular e esfolar. O autor de Cidadania da bomba, exposto a esse saber de porões, sabe que não ficou imune a tamanha crueldade após haver se debruçado sobre tantos papéis que buscavam documentar o inexprimível. Mas a tentativa de se esquivar dos gritos remete a um segundo nível de dignidade, a partir da qual elabora uma série de especulações que surpreendem.
Quando o foco da narração parece ir além da neutralidade de uma câmera de segurança, aparece a principal virtude desta coletânea: o incômodo sempre retorna, fazendo com que as narrações pareçam atrapalhar o desenvolvimento de um raciocínio especulativo, uma espécie de gnose: “A pia não sai de lugar. A água sai de lugar, ainda bem. Os dentes continuam fixos. A espuma não permanece no lugar...” (p. 23) E dentro do panorama, as próprias narrativas têm sua maior força quando são expostas como obstáculos ao prosseguimento dessa especulação cruel, onipresente. Assim, dores e desejos se tornam entraves, esvaziados em detrimento do funcionamento retórico de argumentos corretos, porém carentes de sentido, em última instância. E assim, a violência se justifica em função de lugares-comuns como a liberdade de pensamento ou o direito de ir e vir. Nessa gnose técnica, conforme se desenvolvem os contos, tanto índios quanto ocupantes de prédios ociosos tornam-se os principais óbices, contrários à livre fruição de bens ou mesmo ao desenvolvimento do Brasil. E quem lê se revolta facilmente contra a violência dos torturadores, mas nem por isso deixa de adentrar em algumas divagações que se aproximam daquilo que Hannah Arendt chamou de banalidade do mal, a indiferença caracterizadora dos burocratas da morte de ontem e possivelmente dos “cidadãos de bem” de hoje.  
Esse sequestro das narrativas, as quais são oprimidas por uma vontade geral de racionalismo a qualquer preço, chega também a sufocar os diálogos a ponto de romper com qualquer condução lógica das falas de seus personagens, que normalmente são apenas tipos criados por um autor que se reconhece impotente para a liberar a expressão desses outros e mais ainda para lhes conferir introspecção. Isso não implica uma falta de dialogismo. Muito pelo contrário, há uma série de encadeamentos de significantes que formam progressões dentro das narrativas, nunca isentas de violência. É o que se dá no conto “A pontaria de Deus”, no qual um grupo de policiais busca fundamentos banais para matar um homem qualquer. Ao saber que o procurado era mulher, a vítima afirma, pela lógica: “— Eu não sou mulher! Me soltem!” E então respondem os fardados: “— Não é mulher, mas é veado. É a mesma coisa para mim. Então bem que pode morrer no lugar de outra.” (p. 12)
Esse aflorar de realismo, que, como já se afirmou, mais incomoda do que cativa, acrescenta-se a uma série de outros obstáculos à especulação fria que — essa, sim — é capaz de cativar quem lê. Entre esses obstáculos, aparecem também chavões acadêmicos, como os conceitos de desterritorialização e reterritorialização, de Gilles Deleuze, que certamente preferiríamos não encontrar imiscuídos na vala de banalidades da qual o narrador não deixa de ironizar. Não que Pádua banalize conceitos importantes de filosofia ou de teoria literária. O autor não deixa passar em branco o fato de que separações como incluído/excluído, central/marginal, dentro/fora, desterritorialização/reterritorialização não são mais do que problematizações segundo as quais instituições e sujeitos se moldam mas que, em última instância, são indiferentes para a matéria, como a imobilidade da cerâmica da pia, a mobilidade da água que molha ou a imobilidade dos dentes de Cálcio, nome do livro de poemas do autor no qual esse apelo à química como limite aparece com maior clareza. De qualquer maneira, os muros, objetos muito recorrentes em Cidadania da bomba, são compostos, em última instância, por tijolos (para separar proprietários de ladrões), sacos de areia (para separar o espaço devido ao mar ou à cidade), por pessoas (para separar os ordeiros dos desordeiros) ou por imagens (para tipificar o ilícito do lícito). Independentemente das fronteiras que esses muros, isto é, essas separações conceituais, criam, pode-se pensar, a partir do conto “Seis patas de liberdade”, que esses espectros nada importam perante o andar de uma barata, a matéria vivificada, que passeia pelos muros. Independentemente do muro estar limpo ou grafitado, de ser liso ou estriado, a barata não se importa com nada disso, exceto talvez com os furos de bala, que poderiam confundi-la.
Assim como em outros contos, essa saga da barata, intitulada “Seis patas de liberdade”, certamente alude a Clarice Lispector ou — quem sabe? — a Kafka, mas também pode ser aproximada à fragmentação do “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade. Mas justamente nesse ponto é que surge em Pádua o verdadeiramente insuportável e o que há de mais cruel da parte de um escritor. Cidadania da bomba procura tratar verbalmente as referências ou obras de arte mais queridas de seus leitores com a mesma violência e banalidade com que sofre um desgraçado qualquer, despojando versos, citações e imagens de suas auras éticas ou estéticas. Nesse sentido, a violência está sempre à espreita da obra de Pádua Fernandes, mas não se manifesta nunca onde desejaríamos encontrá-las: no sofrimento de seus personagens, o que lhes conferiria certo heroísmo. Se a cultura erudita foi satirizada no modernismo e se a poesia marginal levou mais dor e a violência até ela, o livro de conto de Pádua Fernandes perfaz algo até mais cruel quando leva fragmentos do que se costuma considerar como as mais ricas experiências expressivas da língua a um mosaico de frieza, não tanto o da tensão do paredão, mas o da indiferença da vala tornada comum.


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Leonardo D’Avilaé Doutor em literatura pela UFSC. Traduziu ao português os poemas latinos de Rimbaud (Cultura e Barbárie, 2014) e atualmente é pesquisador do CNPq, para o qual investiga a obra de Prudente de Moraes, neto.  

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