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Ilustração: Marcel Karam |
O monstro à mostra do oco que sou
inomináveis homens das trevas em mim
na dobra da obscuridão do entorno
um foco de luz pequeno não guia
apenas deixa à mostra
ao relento neste lugar que não é dentro nem fora
na concavidade que vou, me desconheço
com a dor do “mas poderia”
estando, não estou
na crista de uma onda que não quebra
vou ao alto, como em uma cruz
ao menos sem nunca ser um mártir
Palavreados para colorir
Pedaços de lirismos aqui e ali
Deitando palavras fora
Para por a poesia por toda a vida
E vida à poesia
Lantejoulas e latejos
Passo os olhos por tudo que eu fui
Percorro o olhar pelos corpos que amei e me amaram
Ainda que nem sempre os mesmos
Em cirandas, houv’éramos
Os olhos passam como eles passaram por mim
Descuidos e ânsias
Um estrondo marca uma ruptura
Semidesperto sinto o sonho se dissipar
A sobriedade do desencanto
A gana em não ser miserável toca piedosa a solidão
Sorrisos constrangidos
É passado
Sou passado
Fui passado para trás
Na ordem de importâncias, beirando as desordens
Prioridades inconclusas
Desejo e falta incontestes
Bocas manchadas de vermelho
Roupas marcadas de suor
O corpo pulsa na pulsação do grave da música
Dedos que até então desconhecia, criam o instante presente
E é como se fossem as mãos de todas as pessoas em todos os tempos
Amortecimento
A lembrança de todos os instantâneos passeia pelas gentes
O jorro me insere no presente
A paz do mundo cabe na transitoriedade
Um zunido precede a surdez
Longe das mentiras confortáveis
Deixo de ouvir o que diz
Finjo entender os resmungos que me chegam
A música cobre sua voz, ou assim desejo
Aceno com a cabeça a minha dissimulação mais covarde
Saco um cigarro na carteira
Tento colocá-lo em meio aos meus lábios
Constato contrafeito que ali um cigarro virgem já espera ser aceso
Ridículo que passei a ser, não consigo disfarçar o meu lapso
Meus erros só fundamentam o seu desejo
Acendo meu cigarro
No hábito te empresto ele para que você acenda o seu
Quando você me devolve, enfio rápido ele em minha boca
Fecho os olhos e busco o invisível
Volto e tudo continua ali insuportável
Com a sobriedade que a tontura do cigarro me dá, te escuto uma última vez
Ao final concordo/aceito
Inspiro desesperadamente e meu cigarro acaba em poucos tragos
Você com calma termina o seu muito depois
Objetiva, joga o filtro no cinzeiro como os que não têm dúvidas
A legião que és, perco de vista na multidão
Olho para as nossas bitucas e outros restos
Seu filtro vermelho de batom, o meu vermelho de sangue e lábios mordidos
As brasas ainda chamuscam por algum tempo
A fumaça insiste frágil
Até que éramos.
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Ilustração: Marcel Karam |
Dos enganos e engasgos
deixe um equívoco
como uma réstia de erro
por misericórdia
não há perfeição em humanidade
nem alguém que nunca errou
o poeta deve amar seus enganos
pela nossa miséria
ninguém faz líricas como bate um mecânico coração
a vida pulsa e pulsa e vaza
a palavra vivendo entre arritmias e saltos neuronais
nos sulcos das caramiolas
o rigor técnico põe todo o acaso em risco
escapar errante é o que resta
na poética convulsionante da teimosia
Manchetes e outras sanguinolências
Do corruptível se sabe apenas a história oficial:
Ameaça
Do outro lado,
Trabalhador honrado e pai de muitos;
Homem de bem.
Na eterna luta contra o mal
Mal pago, mal alimentado: obediente.
O degenerado, veja a ironia, mora no bairro ao lado.
Para a água sanitária
E a moça da limpeza que eternamente limpa:
Iguais.
Geridos na mesma injustiça: irmãos.
Pescoços, peitos e virilhas (na entropia sintrópica de eu-você: o mundo)
corre
em rio ou mar
janaína ou iemanjá
anunciados
animalescos
às estreitas, espreitas e esquadros
entre flocos de açúcar ou cristais de sal
de confeiteiro por tudo que é suave
de pedras por toda a organicidade coesa do mineral inorgânico
o inverso, cambiante, amplia
entre a leveza e o peso
o espanto de nosso paladar
entre vários sabores
você comida mediterrânea não deixa de surpreender
o sublime em realidades imanentes
correndo
como lágrimas, suores, fluidos e sedes
os lábios vertem tudo que há
sedentos, gulosos
de partes de você que eu tenho que reaver
de partes de mim que eu tenho que criar
de partes que eu: quero
sim
preso, pois anseio a liberdade de suas curvas, volumes e reentrâncias
pulso
e sinto meu sangue pulsar em diversas partes de mim
pau, coração e vísceras ondulam em sintonia
sentires que depois de tanto tempo soam inéditos
me sinto livre, pois te anseio
as mãos passeiam por entre tudo
cada pedaço, cada palavra
para daí partir
vem
"E o que que a gente faz daquela angústia?"
novamente penso e sinto através da mesma dor
tenho que tirar das pedras o sumo
e desse martírio excludente criar um novo curativo capenga
e sobreviver a essa dor, mais uma vez
variações sobre o trauma
variações sobre aquele que treme e varia
não é por falta de novidade e outridades
é necessária a reincidência
escrevo para passar como você que passou e não voltou
meu recurso é repetir
é por esperança que volto para onde não saio
o eterno retorno e possível estorno
quero a falta estéril
calejado e calcinado também
sua ausência em mim tem que cessar
por ora, não cessa, se assenta e vai além
aos poucos vou sentindo novas urgências
meu pesar vai das respostas não dadas para as conversas não iniciadas
descanso e desinteresse
não sei se evoluo ou retrocedo
João Henrique Balbinot, nascido em 1989, paranaense de interior, gosta de viver rodeado de músicas, palavras e pessoas. Quase sempre. Além de escritor, é também psicólogo.Como autor, além da participação em diversas antologias, publicou os livros de contos No arco-íris do esquecimento (Ed. Multifoco, 2012) e Permeabilidades do Intransponível (Ed. Patuá, 2016) e também o livro de poesias Pequenezas e outras infinitudes (Ed. Multifoco, 2014). Mantém no Facebook a página "Poesia fugidia". Contato: jh_balbinot@hotmail.com.