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Pobre de mim, criança - José Maria Correia

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Ilustração: Amy Ridgeway



Pobre de mim criança ,que ainda aprendendo a falar já era aterrorizado com o fogo do inferno.
Não bastasse a finitude, a morte, havia ainda a expiação eterna.
Pobre de mim que por minha máxima culpa soube que por pecado original causei a perda do paraíso .
Que havia partes proibidas do meu corpo, e se causasse prazer tocando em meu sexo ficaria cego.
Que deveria me confessar de joelhos e seguir as tenebrosas penitências severas.
E se não confessasse, ao comungar a hóstia sagrada se converteria em sangue em meus lábios.
Era o Deus do horror, da procissão do senhor morto ao som das terríveis matracas levadas pelos homens de capuzes negros.
Penso que fui bem educado pelas convenções , não em casa, mas na rua e na igreja aprendendo no catecismo popular que os judeus jamais chegariam aos céus, assim como os protestantes.
Que as mulheres separadas se tornavam disponíveis à todos e que as pobres amantes perdidamente apaixonadas por homens comprometidos não valiam mais que prostitutas.
E que as prostitutas podiam sim serem surradas impunemente.
Que os doentes deformados deviam estar escondidos em quartos fechados .
E que os jovens em busca das drogas não lícitas deveriam ser internados em manicômios até enlouquecerem .
Que os negros na televisão não eram nada discriminados, tinham seus espaços, eram os empregados domésticos e para um papel maior um branco seria tingido.
Tia Anastácia e Mamãe Dolores sabiam bem disso
Que ser músico , escritor e poeta era coisa de desocupado ,e que viemos à este mundo somente à trabalho e mais trabalho.
Que um homem verdadeiro jamais expressa suas emoções ou chora como nossos pais não choravam.
Bem ,mas no cinema havia mais erudição, tive grandes aulas sobre geopolítica e antropologia explicando a ferocidade dos índios norte-americanos, bêbados que escalpelavam e estupravam as donzelas loiras e por isso deveriam ser exterminados e expulsos de suas terras, como foram .
Também descobri que na guerra o lado dos bandidos era o dos árabes que resistiam aos colonizadores, assim como os italianos eram todos mafiosos e os nobres ingleses com seus navios e canhões desbaratavam as quadrilhas de chineses traficantes de ópio para assegurar o monopólio da rainha.
Que espanhóis e portugueses vieram salvar nossos povos primitivos de suas crenças e deuses como os cruzados salvaram os muçulmanos pelo fio da espada com os batismos de sangue.
Claro, logo soube que os russos estavam chegando e viriam de muito longe para tomar meu quarto e meus brinquedos .
Aprendi ainda que a menina inocente que perdia a virgindade por amor e sedução juvenil era galinha.
E os meninos que gostavam de rapazes eram veados e tinham que apanhar para aprender a serem homens e sofrer bullyng com apelidos jocosos .
E no ginásio descobri que finalmente os militares iriam salvar o país fechando os parlamentos, os sindicatos e os grêmios estudantis.
Que era importante queimar livros, censurar filmes e peças de teatro.
E que as chamas das fogueiras da inquisição e da intolerância continuam muito vivas e os muros entre os povos não param de ser erguidos .
Aprendi muitas coisas úteis sobre a superioridade da raça branca, a inferioridade dos emigrantes que não podiam frequentar os clubes tradicionais fundados por também emigrados e seus filhos.
Sobre a prevalência dos mais ricos e a importância das aparências sobre todas as coisas.
E quando imaginei que pudesse ter sido afinal deseducado dessa forma tão indigna , vi que no país mais poderoso do mundo o líder eleito pela maioria do povo - é a síntese disso tudo, Donald Trump.




Jose Maria Correia é advogado e delegado de Policia aposentado. Foi Vereador, Prefeito e Secretário de Estado.Escreve contos, crônicas e criminosamente poesias. Colabora em Blogs e Jornais esporadicamente. Tem uma família linda cria animais abandonados e é motociclista muito veterano.

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