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crus os cantos das bocas - cinco poemas de Cecília Floresta

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"Triple Portrait of E", 2014, de Sophie Kahn





ensaboa


o que me preocupa, carlos
é como o amor pode virar espuma
no canto da boca dos outros




desamélia


existe neste mundo
um consenso muito grande
por carne crua & sangue dos outros

apesar talvez
em virtude de minha pena
ser ainda muito tenra
os itens elencados
pudessem caber em louros
na cabeça de camus
ou naquele livro póstumo
esquecido em gaveta
de roupas íntimas

meu amor
ainda chegará o dia
em que andaremos na rua à noite
e nossa maior preocupação
será qual pé pisar primeiro:
ao contrário do que tememos hoje
nos ocuparemos em aprimorar
as figuras de linguagem
e não a animalia alheia

há de chegar esse dia
quando então amélia será liberta
daquele samba restando apenas
a melodia muito alegre
e nosso inteiro consentimento




sete cabeças


deus me livre de samuel
das ideias de samuel
dos diálogos em desencontro
dos pensamentos fragmentados
das línguas incompletas
que nada dizem de sentido
efeito algum que não seja colateral
& no entanto nenhuma bula

gogo & didi pelo menos eram dois
fossem mais
teriam recriado o movimento do mundo:
repetitivo contrário louco aos pedaços, mas com certas ocasiões notáveis, talvez até um pôr do sol, quem sabe se godot ou aquela cena sem sentido de flash dance, muito embora um conto de edgar allan poe em noite fria & chuvosa, contudo um solitário merlot

ou o fluxo de gente
na linha 4 amarela do metrô
na rodoviária tietê
na avenida paulista em horário de pico

por isso
deus
deus me livre de samuel
que não foi profeta
mas previu assustadoramente nítido
o movimento do mundo
muito mais do que têm se provado certos
os versículos do apocalipse




trio sonata II


você faz tanto barulho
dentro de mim
que o trânsito da consolação
parece buzinar uma sonata de bach
em dó menor




arrecife


inexata
deslizava os passos
em caminho de pedras
despertas da areia pela maré baixa
numa manhã que pouco queria nascer
incompleta de alguma saudade
cravada em unhas
num coração cansado de gente

a senhora um dia ainda se deixa afogar num copo d’água.

veja:

o horizonte
não é assim tão longe quanto parece
se calhar
dá pra atingir aquela linha ali
num piscar de tempo

é tudo quesito de gosto
o soltar-se tem um
o deixar-se há de ter outro
mas sem questões
de um melhor que aquele
& etecétera

cada boca sorve aquilo só
que faz salivar
pelo amargo ou pelo doce
por um ou outro lado
o de dentro que sangra em vermelhos segredos
o de fora que derrete em suor transparência

mas quem só enxerga as coisas de longe não consegue atinar pra quase nada do mundo.

que seja:

inexata
caminhava com os pés
polvilhados de areia
os olhos atentos
apontados pro horizonte
que ninguém mais vê:
esse abismo todo nosso
que cavamos ilusórios
peito adentro






Cecília Floresta nasceu na capital paulista em dezembro de 1988. É graduada em Letras pela PUC-SP, ganha a vida editando livros e não passa sem amores ou literaturas – com apreço especial à brasileirada contemporânea. Vive pelos bares, escreve torto uns poemas sem métrica & desconversa. “Poemas crus” (Editora Patuá, 2016) é seu primeiro livro.

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