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FENDAS NA PERFEIÇÃO: O MUNDO PERFEITO - Fernando Rocha resenha Claúdia Marczack

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O sucesso angustia, porque não é um objeto que você possa possuir nem trancar num cofre. De fato, o sucesso é um atributo do olhar dos outros, os quais, repentinamente e de maneira na verdade bastante arbitrária, decidem olhar para você com placidez e agrado, dando-lhe o incerto presente de considera-lo bem-sucedido.
(Rosa Montero)


Um grande feito pode ser medido, quando o admiramos e nele não enxergamos a presença do extraordinário logo de cara, assim, ele nos transmite a sensação de que qualquer um poderia tê-lo realizado, contudo, basta uma tentativa de realização e atingimos a impossibilidade de concretização. Bem, este é o caso do romance recém-lançado O Mundo Perfeito(Penalux), de Cláudia Marczack, como bem escreveu na orelha Maria Valéria Rezende, o leitor não encontrará velhos truques com malabarismos de linguagem, é uma narrativa fluída que obedece a linearidade cronológica, todavia, está aí a busca pela manutenção de uma espécie que Walter Benjamin detectou a extinção, na primeira metade do século passado: o narrador. Narrada em terceira pessoa, neste ponto, encontramos a mão talentosa da autora, que escolhe a onisciência para o cúmplice da protagonista Luísa. Campeão da asma e princesa da banha, sorriu Luísa, em seu íntimo. (pg.15)
Luísa uma mulher que goza das comodidades da riqueza, Eduardo o marido provedor ausente por conta das viagens de trabalho, emprego este que lhe paga um salário e o permite manter a maquete-vida em pé, Eduardinho garoto fragilizado pela ausência de necessidades na vida, e Valéria filha mais nova, a família parece ter sido retirada de um comercial de margarina, contudo, a noção de perfeição é desfeita logo na primeira página: Achava intrigante isso, a felicidade nunca lhe parecia completa. (pg. 9).
Neste tempo de brados políticos por todos os lados, Cláudia fazendo bom uso de sua escolha narrativa, consegue discutir o tema da velha e boa luta de classes, sem soar panfletária e/ou oca, o que pode ser a mesma coisa:
Esperava naquela tarde, ansiosa, a casa tranquila. Já havia feito tudo o que tinha planejado para o dia, compras para os filhos, visita àquela ONG de assistência a crianças carentes- graças a Deus, só na área administrativa, para combinar uma nova doação de recursos. Mais crianças, e ainda por cima pobres, ela não aguentaria. (pg. 19).
A rachadura que acrescenta ànarrativaum novo movimento dentro do tédio da rotina é a contratação de um pedreiro, para reformar um banheiro, cômodo que serve como uma interessante metáfora para a interioridade das personagens, afinal neste lugar é onde todos nos apresentamos sem máscara, mesmo sendo sabido o que fazemos lá, nunca falamossobre as secreções despejadas, afinal dizem ser falta de educação tratar de tal assunto. O profissional introduz na paisagem do belo quintal, crianças seus filhos os gêmeos W, correndo livre pelo quintal, diferentemente, dos pequenos da casa, Luísa os admira, os acha belos.
Se toda obra de arte acrescenta uma discussão de temas, mas não se encerra neles porque há na emissão a preocupação do tratamento estético, esta escritora nascida em Santos dá a sua contribuição grandiosa para a literatura praticada em nossos dias. 

O mito de que toda mulher nasceu para ser mãe e que ama seus filhos: Ficou olhando osfilhos.Um olhar sem carinho, de observação quase científica. Como poderia considera-los seus. Seus filhos? (pg.10); a felicidade dos retratos familiares, hoje, compartilhados em redes sociais: Eduardo a prendia em um mundo confortável e incômodo. (pg.101); a noção de moral: Safadeza, transa, trepada. Fosse qual fosse o nome daquilo, ela tinha coragem de ir até o fim (pg. 53). Tudo isso aparece no desenrolar da obra com a mesma destreza que o artesão usa em seu trabalho, a sensação que o leitor tem no encontro com o romance de Cláudia é que algumas palavras como quem não quer nada estão espalhadas ao longo das páginas, como se fossem pistas, um convite para o leitor-detetive seguir decifrando e saboreando enigmas presentes no carrossel das personagens que giram em frente aos nossos olhos.


CLÁUDIA MARCZAK em 2009, parceria com uma editora portuguesa, publicou Lugar Algum, livro de poemas. No ano de 2010 veio o Caos, publicação independente, também de poemas.  Autora de A Flor da Pele pela Editora Penalux.


Fernando Rocha é paulistano, nascido em 1981, graduado em Letras, professor de Língua Inglesa na rede municipal de São Paulo. Fotógrafo amador, autor do livro de contos Sujeito sem verbo (Confraria do vento) e da novela Oslaços da fita (Penalux), Possui um conto na coletânea Descontos de fadas (Alink editora). Colabora com as páginas Letras inacabadas e Letras et cetera. Tem textos publicados nas páginas Musa rara, Cronópios, Jornal O Relevo, Meleca-chiclete.

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