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Não, de Bruna Mitrano, por Gabriel Resende Santos

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Embora eu não desgoste de quem usa a poesia pra conjurar mundinhos idílicos docemente apaixonados, aquele êxtase intenso da maresia de Copacabana, a verdade é que este recorte edulcorado, hegemônico sabe-se lá como, alcança a saturação muito rapidamente. E mais do que encher o saco, propõe uma visão de mundo que é muito parcial, classista, minoritária (e não venha o cínico falar em “exceção”), tão insular quanto a poesia por si só, tornando-se quase um empenho, me parece, em intensificar este isolamento. Daí que as elegias escritas da França, as trocas de e-mails afetuosos de diferentes lugares do país e do mundo, a experiência epifânica de pegar um ônibus na Glória, o primeiro contato com a violência no filme do Tarantino, a marginalidade de morar em Ipanema, embora curiosos em seu manifesto cosmopolitismo, falham em captar uma realidade muito mais complexa e definitivamente menos cheirosa.

Veja, a poesia não tem necessariamente um compromisso com a realidade. Por mais que uma análise sincrônica sempre leve em conta as repercussões de um texto conforme o seu contexto, não creio que uma análise sobre o agora, o agora que se configura cultural, social e politicamente, seja imprescindível. A poesia pode muito bem voltar-se sobre si mesma, sob a égide da crise, e diluir ou hipertrofiar a linguagem; retomar uma tradição visionária, solenizadora e por vezes críptica; ou reduzi-la à herança modernista do lúdico urbano, processo que quando bem-sucedido areja novos temas e novas formas.

Mas é legal quando os voos poéticos não se contêm. A poesia também serve aos propósitos, nunca mutuamente excludentes, de ocultar suas imundícies na amenidade apenas aparente de sua dicção, questionar tabus num tom de maior urgência política, dilapidar tronos em uma sanha iconoclasta de abolição dos axiomas e, sobretudo para mim, expressar um cansaço que não é apenas da linguagem, mas de uma realidade ou de uma perspectiva da realidade.

Nada garante que um poema bom vá sair destes intentos. Na maioria das vezes não sai. E a biografia não tem tanta influência sobre isto. Não vou negar a importância da autorreferencialidade, as coisas que a ocupação de determinado espaço social ensina, mas tenho a impressão de que os poetas mais malditos do planeta nunca se farão conhecer porque foram poetas muito ruins. Ou seja, a vida não faz a obra. Esquece a vida. Bruna Mitrano certamente Não (Editora Patuá, 2016) precisa expor a sua. Ela é simplesmente uma excelente poeta.

Tecendo um comentário sobre Não, acho desnecessário martelar a quase quebrada tecla do seu vigor poético, sua fúria incontida. No prefácio, nos comentários, nas conversas sobre a poeta, o caldo inflamável que cobre seus textos, na iminência de um fósforo aceso, é sempre trazido à tona. Seus poemas são bombas, mísseis, facas pontiagudas, o grito ensurdecedor de uma mulher aos ouvidos dos que tentam recusar sua voz. Sim, é uma poesia do confronto, da resistência, da recusa.

O problema é que já falaram tanto nessa direção e com tanta eloquência, com tanto senso de verdade inquestionável, que eu fiquei cansado. E para não tornar este meu arremedo de comentário crítico uma tautologia, e porque eu acho que a poesia da Bruna merece mais, eu prefiro, supondo uma dialética que talvez seja o legítimo cerne político de seu livro, falar um pouco sobre a face de sua poética oposta (ou complementar) a essa obstinada ideia de resistência: a desistência.

Então. O conjunto do Nãoé formado por poemas e ilustrações-poemas, texto e imagem. Há uma heterogeneidade de recursos e escolhas formais vinculados, porém, a uma unidade temática que se afigura, sob uma visada ora surrealista/surrealizante, ora quase antipoética, como um desvanecimento do cotidiano e suas imagens típicas (que talvez soassem de antemão atípicas para o leitor de poesia médio, habituado a outra realidade). Vale notar que a poeta coligiu textos produzidos num longo espaço de tempo e tais intermitências explicitam as tantas dissonâncias de abordagem formal, sempre uma escolha arriscada ao constituir um projeto de livro, mas que não se tornou vã graças à força singular dos versos e também a esta espécie de enlaçamento semântico, seja ele fortuito, refletido ou inevitável.

Agora leiam isto: odeio refrigerante mas/bebi coca-cola/só pra fazer sentido.//nada de bom ou terrível aconteceu hoje.É um dos poemas de Não, um dos mais sucintos. Na página contígua, a imagem de uma mulher estendida sobre o que parece ser um solo rachado, até percebermos que as rachaduras são madeixas soltas. A esta ilustração, somam-se outras de mulheres e homens recolhidos, jacentes, cercados de ratos, às vezes solitários, às vezes transando, sempre nus. Um rosto sendo esmurrado, uma mulher enforcada pelo próprio cordão umbilical, gritos. Rostos velhos e monstruosos, corpos naturais, belos.

Nessa apresentação da vida como ela é, sem maquiagens, sem os adornos das posses, há de fato uma lógica de embate, a intenção patente de induzir um deslocamento incômodo. Trazer de volta e à força o humano à sua essência, despojado de amarras sociais e pudores. No entanto, isto também é uma atitude de fragilização que eventualmente nos levará à solidão, ao delírio, à crise e à empatia. Empatia, sim. Rotular a poesia da Bruna como incessante golpe de um aríete (observem o poema de abertura do livro: “abro minha guerra./estou na sua frente./me olha./”) sem reconhecer seus intervalos exaustos, sua piedade, sua vulnerabilidade e sua necessidade de alcançar o outro, seja o amante anônimo, a criança de chinelos ou a mulher enlouquecida, antes de se ver às voltas com o próprio apagamento, é fechar os olhos para um caminho mais intimista, mas também fundamental, do Não.

Atente ao poema do refrigerante. Atente aos corpos cansados das ilustrações, à mulher enforcada. Atente a estas passagens: “a raiva ainda alinhada -/é difícil, ele disse,/morrer” ou “ah esse calor terrível/deito no chão –/você acha que vai chover?”. A dica está dada: o Não é uma ordem, um comando intransigente ao desavisado leitor, mas também negação de si próprio, reconhecimento da frivolidade de suas próprias demandas. Consciente do alcance do grito, Bruna Mitrano grita, mas também sussurra, a voz quase muda após o uso de toda a sua força para articular uma guerra tão interna quanto externa. O eu-lírico não pode apenas rejeitar o que o outro tenta lhe impor: ele se vê forçado a acolher suas próprias negativas, dada a impraticabilidade de qualquer contenção da vida, essa caprichosa.

O Não, perdão pela antinomia óbvia, implica também um quase sim, uma quase aceitação. Não que Bruna aceite passivamente a merda que lhe arremessam. A poesia corrobora justamente sua rebeldia – e inúmeras vezes ela se reveste de fato da potência e da agressividade que tantos já apontaram. Contudo, há igualmente uma espécie de serenidade impregnando o delírio e uma generosidade inabalável ao descrever com algum grau de afeto os personagens tortuosos de um cotidiano duro. A força de Bruna Mitrano não é apenas uma porrada: ela convence, cativa, abraça. Sim, se não for forçar demais a barra, rola até um abraço. Um abraço em outras mulheres. Um abraço em outros marginalizados. Um abraço sujo, torto e insuficiente. Mas um abraço.

No fim de tudo, Nãoé mais uma negativa da linguagem, este inevitável lugar-comum. Consciente do início ao fim, ele sabe que vai fracassar. E fracassa. Mas não lamentemos. Este é um belo fracasso, como todo grande livro aspira ser.



*        *        *






Bruna Mitrano (1985) nasceu e vive na periferia do Rio de Janeiro. É artista plástica, articuladora cultural e escreve. Em setembro deste ano, lançou seu primeiro livro de poemas e desenhos, o Não, pela Editora Patuá.






Gabriel Resende Santos é escritor nascido no Rio de Janeiro em maio de 1994. É autor do livro de poemas Elevador (Patuá, 2014) e do inédito Vista Cansada. Já apareceu em antologias, jornais e revistas, mas ninguém o reconhece na rua.

















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