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Ímpar - Guido Viaro

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Ilustração: Rezo/deviantART




O calor de agosto retarda o relógio “faz um tempo eram três e quinze, agora três e dez”. O zumbido da batedeira abafa o ruído do motor da geladeira, mas um leve contato com o dorso da mão é suficiente para provar que o calor externo continua gerando frio. A massa do bolo esconde vida que suspira através de bolhas, mas que depois de dois instantes volta a ser igual ao mármore da    bancada.        
                                                   
       Susan esvazia os pulmões. Faltam dois minutos para as três e quinze. No alto da testa seus cabelos colados pelo calor desenham uma  franja que não existe.

       “Agora adiciono o açúcar e levo o bolo ao forno. Será que já não deveria tê-lo colocado antes de bater?   
                           
        - Não vai fazer diferença. Abre o armário de condimentos e no instante em que iria derramar o pó branco percebe que aquilo era sal. Suspira aliviada. Localiza o açúcar, antes de despejá-lo percebe o barulho constante do motor da geladeira. Pendurado em sua porta está o calendário de 1963, as sete primeiras folhas foram arrancadas e no mês de agosto os onze primeiros dias estão riscados. No final do mês, há um dia envolvido por um círculo.

       Desvia o rosto até encontrar a janela por onde enxerga alguns prédios de três andares construídos em tijolo a vista e uma ponta prateada do rio Ness. A janela não permite que enxergue o resto da paisagem, os prédios maiores e o centro da cidade de Inverness. 

        Caminha pela cozinha, mas desiste de sair dela. Abre a geladeira buscando enxergar a paz na lâmpada que se acende automaticamente. O ar gelado seca seus suores,junto com eles, apenas por alguns instantes, desaparece seu desconforto:tranquila como um cubo de gelo.

      Os cheiros derretem seu refúgio, mostarda e carne assada misturam-se com salada de tomates. Em qualquer odor oriundo de uma geladeira há duas realidades conflitantes: a vitalidade dos alimentos e um princípio de apodrecimento. 

         O número circulado no calendário é o 28, o que fatalmente lembra-lhe de outro: 48. Abre novamente a geladeira, agora o vapor gelado não tem qualquer efeito sobre seu humor. Os cheiros parecem mais corpulentos, constroem com seus pesos sanguíneos caminhos pegajosos percorridos por animais feridos.

         No próximo mês haverá mais um número para ser lembrado. Dia vinte e oito de agosto completa quarenta e oito anos e alguns dias depois é a vez de celebrar vinte anos de casada com John. O bolo é para ele, já que não tiveram filhos.

       Quatro da tarde, é a partir de agora que a luz que entra pela janela começa a pintar de amarelo os móveis de fórmica. É quando normalmente Susan sai da cozinha e vai assistir televisão e esperar John, que pontualmente as seis e vinte, abre a porta da casa.

         Hoje ela decidiu permanecer na cozinha, lembrou-se do bolo que ainda não havia colocado no forno. Olhando para as manchas de sol arrastando-se pelo chão, percebe que de alguma forma elas a incomodam, mas sente que precisa suportá-las, encará-las até que desapareçam. Elas parecem animais com o ventre perfurado cujos passos tropêgos não possuem qualquer  perspectiva.  

           Espalha grande quantidade de sal pelo bolo e o coloca no forno. Através do vidro opaco assiste ao crescimento da massa. Aos poucos o dourado avança sobre uma tonalidade de branco que descobre muito parecida com a parte interna de seus braços. Mas há nessa transformação, influenciada pela distorção de imagem ocasionada pelas ondas de calor e pelo fundo negro do forno, que parece fazer com que a forma do bolo flutue sobre nada, uma daquelas perguntas sem respostas. Aqueles eventos corriqueiros que demonstram que o mundo é ímpar e que cada uma e todas as coisas nunca poderão ser arranjadas em pares complementares.  

         Em 1928, aos treze anos de idade, quando passeava com seus pais pelo centro de Inverness, por um instante ela olhou para o rio Ness. Durante esse segundo os lábios de sua mãe continuaram se movendo, seu pai olhou para um avião que sobrevoava a cidade, os carros e os pássaros prosseguiram suas rotinas, os prédios de tijolo a vista e o céu permaneceram ocre e azul bordejado por gotas brancas. Mas Susan, ela mesma, deixou de existir, nesse segundo sem fundo ela foi um pequeno peixe prateado que nadava nas águas turvas do Ness. Criatura cega, que enquanto não terminava esse instante, só fazia rumar na direção do fundo.

         Nadava porque isso era inevitável.  A escuridão fez desaparecer o espaço, sua momentânea condição de peixe ressecou qualquer noção de tempo. Impulsionada por uma força que em alguns dicionários poderia ser chamada destino e em outros era palavra ausente escondida entre dois significados, ela nadou até o fundo do rio cravando a cabeça prateada na lama e desaparecendo. Junto com ela sumiram a momentânea consciência de peixe e qualquer memória relativa àquele acontecimento.       
                 
       O termostato indica que o bolo está pronto. A casca dourada rachou-se, sob as rugas da massa encontram-se ainda alguns pontos esbranquiçados. Os calores e as consistências pareciam indicar que havia vida naquele bolo, fato que primeiro constrangeu-a, depois a incentivou a enfiar a faca com mais vontade.

         Os vapores subiram até o teto da cozinha. A luz alaranjada arrastando-se perto dos pés da mesa lembrou-lhe que não está longe a hora de John chegar do trabalho.

        O bolo esfria. O motor da geladeira desliga-se automaticamente. Ela repara em algumas manchas de gordura sobre os azulejos: nuvens estáticas. Um instante de perfeito silêncio. Enxerga o dorso de suas mãos, as veias nunca pareceram tão salientes. Fecha os olhos. Dentro do odor do bolo descobre raspas queimadas. Retira-o da forma e com a ponta de uma faca corta os cantos escurecidos.

        Pela janela avançam os primeiros sinais da noite. O chão da cozinha, varrido de todos os amarelos é engolido por uma penumbra que parece originar-se no motor da geladeira. Susan olha para o calendário no exato instante em que o telefone toca. Depois do terceiro toque ainda está sentada. É quando escuta o barulho da porta da frente sendo aberta. Levanta-se e vai para a sala.          
                                          
        Sobre a mesa, agora escura, jaz um bolo gelado.    



Guido Viaro é um escritor e cineasta brasileiro nascido em Curitiba em 1968. É autor de doze romances, entre eles No zoológico De Berlim, Confissões da Condessa Beatriz de Dia e A mulher que cai, esse último adaptado para o teatro e recebedor de cinco prêmios Gralha Azul. Guido dirige o Museu Guido Viaro, que homenageia o pintor ítalo-brasileiro (seu avô), que foi um dos introdutores da arte moderna no Brasil, e o pioneiro no ensino de arte para crianças no país. Nesse museu acontecem uma série de atividades culturais, peças de teatro, concertos de música, cineclube, além de abrigar o acervo de pinturas e esculturas de Guido Viaro e exposições temporárias de jovens artistas.

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