David Hockney |
CARNAVAL DA EXPIAÇÃO
Adquirido através de séculos e séculos
No estudo da movimentação dos ventos
Da rotação dos planetas
E do fluxo e refluxo das águas
Nossos sábios definiram com precisão:
A culpa dos súbitos abalos subterrâneos é das crianças.
Eles transmitiram o diagnóstico
Em detalhado relatório
A ordem, portanto, foi expedida
Matem os culpados
Que escondem o veneno sob a face da inocência.
Só assim poderemos de vez
Estancar a febre desses bárbaros
E mantê-los submissos ao destino
Traçado desde os primórdios
Ainda na aurora da humanidade
Pelas mãos que regem aesfera celeste.
Precisamos deles assim:
Dóceis ao mando
Temerosos do chicote
Resignados ao ferro e fogo
Com que os marcamos
Gerações após gerações
Como nossas sagradas propriedades.
Agora vamos juntar todos na praça
Promoveremos um gigantesco espetáculo
Inesquecível carnificina
Festa e jubilo pelo sangue derramado.
Vinho barato a escorrer nas calçadas
Cachaça amarga, cerveja choca e comida podre
Distribuídos às fartas
Para toda essa gente.
Soltem fogos de artifício
Enfeitem nossas trevas
Com luzes ameaçadoras
Explodam rojões
Ensurdeçam os cães
E convoquem também os artistas
Joguem-lhes míseros trocados
Para que cantem e dancem
Balancem as bundas
Tragam ainda as putas
Arrastadas pelos cabelos
E as despejem na praça
Para que abram as pernas
Para saciar a horda.
Deem também uma trégua para os afeminados e as fanchonas
Esse é um momento onde tudo pode.
Proclamem em meio à chacina dos miúdos
Um imenso, mas passageiro carnaval.
Após a cerimonia da degola
Empilhem os corpinhos na praça
Preparem mil archotes
Para a noite da grande fogueira redentora.
Digam a todos,
Insistam, proclamem, convençam
- Embriagados e lascivos
Estarão propensos a acreditar em qualquer coisa-
Queo sacrifício dos filhos foi necessário
Para assegurar a vinda da primavera.
Mas onde houver discordâncias ou dúvidas
Não sejam complacentes.
Quando, enfim, o vento noturno
Espalhar o cheiro adocicado das cinzas da infância
Façam com que todos voltem de imediato ao trabalho
Mesmo com os olhos inchados de ressaca
Mesmo com as vestes ainda tingidas de sangue e vinho
Todos devem cumprir a sagrada obrigação
Afinal, a vida continua.
EU E OUTRAS DEFINIÇÕES
Imprecisão na curva do tempo
Desvio
Marca de vida no linho branco
Nódoa
Voz a destoar no velho cântico
Desafino
Revolta cega diante do nada
Demência
Pesca nas profundezas do lago
Garimpo
Avanço do império da barbárie
Agora
Visão da treva que se avizinha
Colapso
Lua que se esconde desta cidade
Exílio
Ilha que acolhe a nós, os sem rumo,
Beco
Quem coleciona causas perdidas
Eu.
GUERRA
Há uma guerra
Lá fora
Aqui
Dentro
Há uma guerra
No meu país
Na minha rua
Na minha cara.
Há mortos & feridos
Nas montanhas,
Nas campanhas
Nas entranhas
Há uma guerra
Estranha
E há ordem
De não cessar
Fogo
E essa festa
E essa dança
E esse baile
Trôpego
Tétrico
Da morte
Entre
Corpos
Há uma guerra
Sem testemunhas
Lá fora aqui.
Há uma guerra
Em mim.
LAPIDADOR DE DESASSOSSEGOS
Eu, lapidador de desassossegos,
Construtor impreciso de miragens
Navegante nos mares em degredo
Condenado a errar nessa viagem.
Refém semiliberto das tais métricas
A rimar nas dissonâncias do ritmo
A conjugar o imperfeito dos verbos
E a mancar em versos de pés quebrados.
Nesse circunscrito espaço em branco
Desenho a amplidão de todo voo
Em risco vou buscar a liberdade
Numa febre que beira a agonia.
E o poema nasce da ousadia
De se crer portador de uma mensagem,
PAIXÃO DE VIDA E MORTE
Eu pensei talvez fosse alvorada
Luz cintilante a guiar minha vida
Prenúncio dessa primavera, em versos decantada
Algo maior do que o horizonte cinza dos meus dias.
Acreditei que fosse o brotar de um novo tempo
Língua líquida de rio a correr ao encontro
Dos meus lábios sedentos de palavras vivas
Ou quem sabe talvez fosse brisa travessa
A despentear brincalhona a engomada seriedade
Dos meus então profundos fundamentos juvenis
Eu desejei fosse mais do que a esperança
Algo encantado, limiar do reino do alumbramento,
Na forma de paixão redentora, a revolver o peito iludido
Pensei, ingênuo, que seguia pelo caminho certo
A tatear em meio à tempestade de areia do deserto
Rumo ao inexistente oásis de paz, neste tempo de guerra
Mal sabia que aquele que tanto procura, outro tanto erra.
E assim foi trançado o desacerto de minha sina
Ironias desse amor zombeteiro,profano e vasto
Em que, casto, me perdi a desenhar auroras e imagens distorcidas
E a garimpar no ar sons e símbolos como um mágico primitivo.
Eu achei que fosse tarefa tão fácil
Cair vibrando a lança nessa profissão de fé
A tecer, com fios invisíveis, sonhosnessas trilhas de liberdade
E assim fui escrevendo toda a minha sorte
Refém da livre escolha louca, mas humana e comprometida
De viver entregue a essa paixão de vida, que às vezes se assemelha à morte.
QUÂNTICA QUIMERA
Você
Esse distúrbio em minha
Métrica
A subversão da ordem
Poética
Fulcro de rebelião
Estética
Ah, dolorida paixão
Patética
Você
Separação de nossas
Sílabas
Transgressão de todas as
Rimas
Ferocidade de
Chacina
Morte lenta, veneno,
Pílula.
Você
Enigmática face de
Esfinge
Angustiante obstrução na
Laringe
Meu engano
Foco
De guerrilha
Suburbana
Sísifo mito
Cósmica mágica
Esfera
Imprecisa
Aquática ilusão
Terra
Você
Paz
Rompida
Guerra
Dor
Que não cicatriza
Desterra
Torto passo
De quem só
Erra
Você
Toda
Todas
As feras
Atlântica
Ilha
Perdida
Era.
Você
Quântica
Quimera.João Caetano do Nascimentocomeçou a escrever muito jovem, na década de 1970. Participou do Movimento Popular de Arte, (MPA), grupo de artistas que surgiu em 1978, no bairro de São Miguel Paulista, periferia de São Paulo, com a proposta de levar a arte para praças, ruas, favelas e dialogar com os movimentos sociais que explodiam no Brasil naquele período. Escreveu alguns romances e muitos poemas. Ficou entre os classificados do Prêmio SESC de Literatura de 2011 com o romance “Náufrago Noturno”, que não chegou a publicar.