Qualquer movimento gera um subproduto instantâneo
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arte | Pawel Kuczynski |
Um homem empurra a guimba do cigarro contra o cinzeiro. “Mais uma dose de Red”, pede. O bar é populoso. Tanta gente incomoda. Agora que ouviu não consegue mais desviar a atenção do barulho de vidros e talheres se pegando. O som é suave. O uísque áspero. O homem ignora, não quer dar ouvidos. O organismo não responde. Tenta voltar a atenção para TV. Os olhos não despertam. O barulho sobe o humor desce. Pede outra dose. Seus sentidos estão mais sensíveis. Anda ouvindo muito ultimamente. O som é alto. “Tudo bem, senhor?”, quer saber o garçom. O homem sai um pouco. Toma ar. Na rua respira monóxido de carbono o suficiente para poder voltar ao bar e fumar outro cigarro. Aniquila menos que glutamato, pensa. Um carro avança o sinal vermelho e desaparece. No sentido oposto o trânsito está parado. Uma mulher dispara a buzina. Um mendigo pede esmola. Mais um carro avança o sinal e não tem a mesma sorte. O homem amaça o toco de cigarro no chão. Uma mulher chora. Pedestres oferecem ajuda por compaixão ou instinto ou ambos: instinto de compaixão. Homens ajudam. Uns assistem a cena e apenas sentem piedade. “Socorro!”, grita a mulher presa do veículo. Um jovem aproveita a imobilidade e leva dela a bolsa. Rapidamente, assim que dobra a esquina, olha o que a bolsa carrega. Sorri e vai embora. Um objeto cai. O jovem ignora. A mulher nem percebe. Está ocupada. O instinto é regido por hierarquias. Os homens tem compaixão. A ambulância chega e já é tarde. A rua é populosa. Não tanto quanto o bar. Lá dentro incomoda mais. O homem acende outro cigarro. Duas crianças atravessam correndo de bicicleta. Curiosos observam a cena. “Tão jovem”, uma velha confirma. Segundos depois a velha dá outra mordida em um sanduíche na lanchonete. Discute com a amiga o tipo de penteado que vai usar no casamento da sobrinha no próximo sábado. Seis viaturas inflam o ambiente. O barulho fere o homem que fuma. Já nem se lembra do som de vidros e aço inox se pegando no bar. Sua atenção não está voltada. Um pedestre pergunta o que houve. O homem fuma o cigarro. Não responde. Não existe para responder nada. Existe para fumar o cigarro. As janelas estão abertas. Um homem sem nome no quarto andar observa. Tem um bloco de notas nas mãos. Um motoboy entra no prédio com uma encomenda. Cães latem o pacote. A polícia pede passagem. O sinal alterna verde vermelho amarelo verde vermelho amarelo verde vermelho amarelo verde vermelho amarelo. Sobre os joelhos a mulher está aos prantos. A piedade da estranha baba resignação. A ambulância segue devagar. Não há mais o que fazer. Não há porque acelerar. A ambulância cumpre a função. É preciso reduzir o estrago. O horizonte é cinza. As sirenes estão ligadas. Há fumaça. Uma mulher desce correndo de um carro. Coloca uma máscara cirúrgica no rosto para poder chegar mais perto. O celular está nas mãos. A vida nos grandes centros é cinza. A queima de combustível é cinza. A queima de combustível não altera o dia. A queima de combustível muda a cor do horizonte, mas não altera o dia que é cinza. A ambulância está fazendo a sua parte. Não há porque ter pressa. O telefone de um passante toca e ele narra o episódio. Conta como se narrasse um filme trágico. O final emociona. Ele tem lágrimas nos olhos e um sorriso na boca. Uma mulher ganha um abraço. Um homem tem compaixão. O policial oferece ajuda. “Minha bolsa!”, a mulher grita e não tem mais força. Ela entra na resignação. O homem larga o cigarro e volta para o bar. Monóxido de carbono o suficiente fora ingerido. O âncora anuncia o episódio no boletim de notícias. A maravilha da modernidade. Qualquer movimento gera um subproduto instantâneo. Protagonistas anônimos fabricam audiência. O espetáculo é belo. Letras são borrifadas no rodapé da tela. O homem perde o foco. Não sabe em que prestar atenção. O garçom aumenta o volume e muda o canal. Um bêbado fecha a cara. A avenida se recompõe da cena. Ninguém no bar fala mais do ocorrido. Todos voltam os olhos para a maratona na TV. A mil metros dali, o jovem com a bolsa e um pacote de balas na mão vence distraído.
Foi no ano de 1986 que tudo começou. Anos depois da sua chegada ao mundo, Raphael Rocha marcou um encontro com a sua presença, mas ela não veio. Da sua "onipreausência" nasceu o primeiro livro de poemas Do Universo Rabisco o Mundo(2011). De lá pra cá, participou de antologias de poesia e teve textos publicados em alguns jornais do país, como o Correio Braziliense, Estado de Minas, Jornal de Brasília, e em importantes sites de literatura, dentre eles o Mallarmargens e a Germina - Revista de Literatura & Arte. Lançou em 2014 o projeto Commodities, uma banda que tem sua configuração alterada a cada show. Ano passado publicou seu segundo livro de poemas Fuga das Horas (2015), pela Editora Patuá. Finalista do Prêmio Sesc de Literatura 2016 com seu primeiro original de contos, Raphael está em busca de uma casa editorial para abrigar a obra intitulada Canções de ninar pedras. Originalmente, sob o nome Bombardeios [false flags], Raphael decidiu dar uma reorganizada no original após resultado do prêmio que recebeu mais de 1500 originais esse ano, e acabou alterando seu nome para Canções de ninar pedras. Mineiro, radicado em Brasília, Raphael sobrevive como jornalista e vive imerso na literatura e música.