à noite
a próxima noite não lhe salvará
a consciência ou o traseiro.
em cada copo de cerveja escura
ou beijo roubado da velha prostituta
ou do gigolô da boate badalada,
você deixará um pedaço de sua alma,
ou do intestino.
a noite da cidade lhe escorre pelas veias
como ácido fluorantimônico
(pois o sulfúrico nem chega perto)?
deseja mais uma dose de amor cintilante fake?
que lhe agarre pelas bolas
e não largue, não solte,
não ame, não beije?
(com beijo é mais caro).
a noite da cidade lhe dará todas as respostas,
lhe cobrirá todas as dores,
dissolverá todas as dúvidas e os ossos,
o cérebro e a ansiedade,
mas o preço é alto, meu camaradinha.
é preciso mais do que coragem ou imprevidência:
é preciso tesão.
não bastam curiosidade ou arrogância,
não são suficientes a miséria e a ignorância;
não se conhece a noite por bisbilhotice.
pois ela é dura, pesada, tonelável,
pontiaguda, perfurante, instável,
indiferente, passional, ininterrupta, inconveniente, intratável, estúpida, afogável,
odienta, bexiguenta, insuportável, inapagável, irrevogável, caudalosa, e nunca nunca
nunca para, nunca, nunca deixa de ser, nunca
não basta a boa vontade
é preciso tesão, prazer
(com prazer é mais caro),
penetrar ao talo.
é preciso tesão, soltar a agonia
gritar a agonia, identificar-se com a agonia, noite é agonia
é preciso tesão, cara
porque a noite não é de grátis
e não há manuais, não há guias,
não há buscas de google que dêem conta, camarada,
não há auxílio-online para desentalar o esperma frio,
não há carapaça para as balas assim-ditas perdidas noturnas.
não há escapatória
essa é a maior verdade:
não há escapatória.
enquanto houver saída,
ainda não é noite.
boas notícias
a boa notícia
é que ainda estamos quase meio vivos
ainda quase meio tolos por continuar
a chapinhar em poças de lamas passadas
embora insistamos em esquecer
os mortos de boca aberta
enterrados nestas mesmas lamas
a boa notícia
é que ainda temos voz
mas, só até quando a garganta
não se entale com o silêncio atroz
dos cadáveres enlameados
a boa notícia
é que podemos gozar, e gozaremos,
mesmo que sobre o barro
e gozaremos, mesmo que sobre ossos
e gozaremos mesmo que já estejamos,
quase todos nós,
quase todos meio mortos
o cara rouba merenda
o cara rouba merenda, entende?
rouba futuros, sumos, existências.
o cara seca a cidade, entende?
seca mentes, dormentes, ossos.
o cara manda psicopatas uniformizados, entende?
psicopatas desentupidos, subdesenvolvidos armados,
para massacrar estudantes adolescentes desarmados.
E continuará.
pois o cara rouba merenda!
e manda bater nos que reclamam
e manda cercar os que reclamam
e manda silenciar para que não reclamem
e manda guardar segredo para que não reclamem
e mandará matar se for necessário
(como tanto acontece há tanto tempo em tantas quebradas)
e se não entende isso,
e se não percebe isso,
se não se revolta contra isso,
quem, ou o quê, afinal, é você?
El tipo roba merienda
tradução para o espanhol de Tata Bahia
El tipo roba merienda, entiendes?
Roba futuros, zumos, existencias.
El cara seca la ciudad, entiendes?
Seca mentes, traviesas, huesos.
El tipo manda psicópatas uniformados, entiendes?
Psicópatas desentupidos, subdesarrollados armados,
Para masacrar a los estudiantes adolescentes desarmados.
Y continuará.
Pues el tipo roba merienda!
Y manda a pegarle a los que reclaman
Y manda a cercar los que reclaman
Y manda callar para que no se quejen
Y manda a guardar el secreto para que no se quejen
Y mandará matar si es necesario
(como sucede desde hace tanto tiempo en tantas rotas)
Y si no lo entiende,
Y si no se da cuenta de eso,
Si no se está rebelando contra eso,
Quién, o qué, después de todo, es usted?
(poemas de Olá, pequeno monstro do dia, Editora Benfazeja, 2016)
Claudinei Vieira, autor do livro de contos ‘Desconcerto’ (selo Demônio Negro), ‘Yũrei, Caberê (editora Patuá, 2015) integrante da coleção Patuscada (premiado pelo ProaAC - Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo), e ‘Olá, pequeno monstro do dia’ (editora Benfazeja), além de participação em várias antologias de contos e poesia, como ‘Visões de São Paulo’ (Tarja Editorial), ‘Sobre Lagartas e Borboletas’ (Scenarium), ‘Golpe: Antologia-Manifesto’ (ebook).