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2 POEMAS DE FELIPE GARCIA DE MEDEIROS

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O Barba Azul


Só,
fremia
às
portas
do paraíso.
Suava
pelas
extremidades, a nuca e o cálido.
Esmo nas ruas
a lenda
se
desfizera
na
tenda
dos meus medos de fera.
Tinha
tantos nomes
quanto
a
entropia
“coisa”

cão/desordeiro/servo de cidades devastadas

prego obstruído, amorzinho,
frasco
seco
de círculos rotos na região sul

Barba Azul era o seu nome na face
o asfalto
crespo,
negro –
(cheio
de
chispas e faíscas de freio).

Olhava, desejava suavidades violentas na defesa

seu corpo/encapuzado
na noite
como véu de viúva
a criança
na
chuva
o
acidente, o nada, o chiar da água,
a beleza
nos pontos escuros da rua
transbordava
o sereno
sobre
a
face
da
lua
e a mágoa
escorria pelos bueiros do meio fim.

Céu azul na meia noite, azul safira
marfim
estirado sobre a lira,
o que acredito
nascer
de novo, (a mentira
fantástica
do
amigo
esquisito)
a avenida principal da cidade onde meu passe
nas madrugadas vazias
postes, insetos
luzes,
sombras da maquinaria do mundo
se esqueciam
de
camuflar
os fantasmas
do
silêncio
em que busquei
acidentar-me,
ao ver-te,
numa
virada. – Teus olhos assustados
no meio
das
pernas
e o fogo alto
do nosso suspiro ralo
no pescoço
um do outro
em
busca
de água no poço,

lembro-me do toque suave e o estalo

as curvas dos braços
como
mulheres malhadas, halterofilistas,
espremiam-se sobre
meu tórax
intrépido
veias saltando na testa e nos músculos

e, sob a noite, os comércios fechados e farmácias,
vimos as pistas
voando
o céu, como melodia
nos protegia
dos
perigos

quem, quem, quem nesta noite nos via?

Amigos
na
vida
e na morte
(um dia salvou-me dos cachorros,
tanta vida
tenho
para
lhe
dar)

mostrou-me como ver a saída
do
beco
mais suicida –
todo o medo arrancou de dentro de mim
e nessa escuridão profunda
onde
reside
o
meu estômago cheio de vômito
absorveu
minhas pestes
que
brotavam da minha moral abduzida.

Via-se de longe como nós vivíamos aquela vida
e o mundo girava
desacordado
em cada
rua
do mundo e, fechados na natureza do fenômeno,
sentimos ver os espelhos em cada
canto da cidade, ébrios
das
latrinas,
partimos nalgum buraco de minhoca no espaço
e refletimos: duas bocas
e o mesmo
anseio,
a luz cósmica da apoteose do amor, escasso
de memórias e lembranças, farto
de bifes frios
e
enlatados

o Barba Azul me deixou assim que amanheceu.



O Barco Vazio


Abandona os silêncios ancestrais
e arranha o mar com as unhas de gatos
pintados nas paredes, que à noite refaz
de vida e fúria quebrando os pratos.

Na proa, nimbos celestes peitam-me –
nos recantos, luzes extintas de astros
fulminam flancos/rasgando o velame
como na carne, marcada de rastros,

o selvagem vento oeste roça um leão.
Vai, velando o éter vazio, da turva
marítima” – pelo frio aqueles vão
onde ignoramos, fora feita a curva.

De sons tinindo na cozinha, o mar
espanta-nos: Quem somos na lembrança?
E de uma volta o leme vai levar
às nossas casas, morta cada criança.

Volteia de vultos a vida revolta,
resignar-se para vomitar terra
deixar ondas e a cada vela solta
cubro o mar de sangue com uma serra.

Serpentes do vale saltam aos pés
mordem o puro Oceano da Beleza
roçando, esguias, expele sobre a tez
o dia comum – onde a morte é presa,

as flores de lágrimas, e os amores
enraízam, crescem em poço baldio;
cabeças de capitães, “para onde fores”
desistem, nenhum membro resistiu;

feroz, sob a lâmina das Serpentes,
navalhas atam fios e a pluma voa
à noite de águas, estamos ausentes
da vida, mortos no Acaso que escoa.

Quando a gota branca pinga no ralo
escadas caem e derrubam o leite
botas sujas o esmagam, leve estalo
caindo pela coxa, com o estilete

firo-me nesse equilíbrio e o sangue
estiola, atraindo aquelas Serpentes,
coberta a face de lama do mangue,
mordo os lábios e perco meus dentes...

Coração aflito, até quando a pirita
vai refletir nosso olho? Couve cúmulo,
tenta a pupila e ao pesadelo incita,
teto aladino sobre úmido túmulo;

poucos sobrevivem pra deixar flores,
nem o vaso quebrou-se de vazio,
a Garuda, de plumas multicores,
entoou o canto para quem a viu;

Sapateiro Zarolho, esquece a fé
ante a noite infinda de aviões,
de trens, a linha intacta, nada já é
repouso, os narizes com algodões

cheiram a fresca relva do Paraíso:
Move-te pelo mar, pelos rios vastos,
ide além! Ametista a ti é preciso?
A boca oceânica, espanto dos castos,

reabre o Abismo – e tu o necessitas”.
Dizem que se deslocou, espumando
perfumes, onde tinham malaquitas,
poeira do buraco que estava olhando.

Libertar-se ao fim de cada segundo,
do Âmbar, seiva da madeira fóssil –
vazo nos espaços e agarro o mundo,
olhos de gatos no convés, em ócio,

na escuridão o pânico me reflete;
e miam possuídos de medo e erro
sem caminho, a última vida das sete,
abafam-me o espírito e os enterro.

As velas pandas e os remos cá e lá
Março, Abril, Maio – grossos nove meses
para decompor e na mesma escala
de três (replicar infinitas vezes).

Fechamos as janelas – eles fogem.
Cada cicio soa no corpo do barco,
desgraçado mandamento selvagem,
as águas inundam o côncavo arco,

é a hora de sofrer de corpo e alma.
Nenhum suspiro sobra do amanhã,
aves de migração, a única calma,
enroscam-se com as línguas da rã...

Oh Barco, ninguém mais aqui resta,
senão o Homem, nem poeira ou capitão –
existo neste universo, “o homem presta
abandonado em si” ... Quem eles são?

Não acuses a Natureza! E a verdade
abre a testa, mares e oceanos, Nemo
profundo, salaz – lança-se à saudade
nas alturas, seguro firme, e tremo.

Poderia assassinar nesse instante
a escuridão – meu rosto – pela âncora,
recifes, tubarões (vão tripulante),
aquele que tu amavas por aí afora;

Enxugo os espectros com toalha suja,
o corpo se estimula com a traça
– não existe mal nenhum que nos fuja:
um dia isso cessa e a tormenta passa.

Como de sono mau, atiro-me ao mar
e o Barco Vazio me vê com espanto...
Barco, por quanto tempo esperei, quanto,
para, braços abertos, naufragar!



imagem: Leszek Bujnowski


*    *    *



Felipe Garcia de Medeiros nasceu em Imperatriz (MA). Atualmente, mora no RN. Graduado em Letras pela UFRN e, recentemente, mestrando em Letras pela UFRN (Natal). Poeta, autor do livro de poemas Frio Forte, lançando em 2012 pela Editora Multifoco. Professor de Português e Literatura do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte, com experiência em gêneros textuais, literatura e ensino. Pesquisador na área de literatura e estudos culturais (nos eixos temáticos: modernidade e pós-modernidade - tópicos de poesia e prosa), analisando a questão da lírica homoerótica em Fernando Pessoa. Leia mais textos de sua autoria aqui.




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