Mar-de-sol
De chuva, de sol, de olhos que se afetam pelas diversas claridades e temperaturas. De um corpo que sente as vibrações temporais, se arrepia, expele líquidos, escorre sentires e transborda à superfície pequena de si. Um dia de sol, vislumbro uma paisagem que me foge ao olhar, é preciso várias pequenas fotografias para alcançar a totalidade do que se me apresenta. É impulso, é corpo querendo água, águas que chamam pelo corpo. Dá-se o encontro das texturas, dos diferentes corpos, um corpo líquido, ondulante, que envolve e faz borbulhar o corpo concreto, calculado, pequeno, mediado por impulsos não-seus, outros sim, mas que se deixa envolver em liquidez que lhe acalma, lhe esfria os poros quentes, abertos. Promove-se uma fusão de natureza natural, mergulhos num namoro que se desenrola no toque, no paladar, nas luzes que enchem os olhos, cegam-no, é luz-de-mar-em-amor, é o instante do silêncio de quem se namora, de quem apenas se sente e se afoga.
Delírios
De palavras tantas, me basto. De olhares outros, julgamentos teus e repreensões deles, bastam as já existentes. Em discernimentos cá-lá-d’onde mais houver, chega, não há mais espaço para repetições, para hábitos cinestésicos de outrora e modelos emocionais vencidos. Chega! Bastam todos os rótulos apodrecidos. Sirva-me um café sem cafeína, sem açúcar, sem a temperatura quente e sem a coloração característica, isso sim me bastará.
O céu que hoje se constitui é de um azul-desconhecido, tão vivo e tão cheio de vida que é como se toda a vida em vivência estivesse com ele, longe, e aqui na terra já não houvesse mais nada que se pudesse poetizar em maior beleza que a composição deste céu. Confio meu olhar a ele, junto das minhas pequenas viagens cerebrais e também daquelas vazias de imagens racionais. Mas sou dele, queria ser dele, escorrer em nuvens translúcidas e borradas, sem nada, apenas seguindo a espiral que não demonstra fim nem finitudes.
Lá vem as gaivotas, todas tão esbeltas e de um perfil ereto e atento. Mas hoje não vai chover e sequer estamos na praia para vê-las correr em desespero prevendo manifestações aguais futuras. Estamos em um lugar cinzento, vazio e desabitado, que dispõe apenas de um teto azul distante. Mas lá se vai o sol e o pôr-dele, assim como as gaivotas em debandada.
Um braço
Era um "oi" para além do encontro, posto que não era um encontro, mas sem pensar e sem tempo de me esquivar, respondi logo e abaixei-me em face fechada. Mas vieram até mim em tom de conversa por vir.
- Pois ora veja, sua irmã se casou foi? Nunca mais a vi!
- Pois que não, ela foi mesmo é morar sozinha, se emancipou de nós.
E veio-me a mão, ele agarrou um dos meus braços e ali ficou, pôs meu braço entre os seus e ficou... a mover-se em gestos precisos e frenéticos. Ele não me olhava nos olhos, olhava apenas para os meus braços, e ainda que parcialmente imobilizada tive de continuar a conversa com sua avó.
- Mas com quantos anos você tá mesmo?
- 22.
E trocou-me um braço pelo outro, ainda com os mesmos gestos, e agora, de tão perto que estávamos eu pude ver seu rosto e percebi seus detalhes, suas sardas, seus olhos castanhos e seus lábios grossos, como era bonito de perto, uma beleza escondida quando vista de longe. Eram incansáveis os seus gestos, mas para mim não transmitiam tradução alguma, ele roçava os seus dedos nos meus e o meu braço ali apertado tentava responder àqueles toques estranhos, como um dançar esmagado.
Fragmento
Em face das teclas, um desprendimento dos significados e uma busca insensata por traduções. Não é a luz, é o olho vermelho devido às coceiras contínuas que irritam e prejudicam a escritura. Mas de nada me adianta usar-me aqui delas, numa não-sei-quê.
Opta-se pelo espaço preenchido ao invés de buscar novos espaços, vazios e disponíveis para ocupações outras.
Que regras de parágrafo e vírgulas e pontos me direcionam senão à pobreza de espaço comunicativo-pessoal? Não sei se correspondo, se me exponho, se te/me completo em palavras, mas canso-me pelos excessos e pelas faltas e não encontro os preenchimentos.
Suspiro
Se te me encontro em vias saturadas, escorrendo em líquidos outros, azedos recortes de dias sem cor surgem-se inalterados pelos seus detalhes tão mais que não-particulares, pois que já se tornaram invisíveis, como as vestes de um mendigo. É dia de mais algumas horas, novas e remarcadas como sempre, os mesmos ponteiros e segundos são percorridos, e discordo, pois vejo que haveria de haver novos minutos em novos dias. Esqueçamos, pois, os ponteiros barulhentos. Mais e mais de algo que não me importo, mais e mais, sempre aglomerando montes de saber esquálidos e pálidos sem novos borbulhares. Eu, máquina de mim, mecanismo de defesa e refúgio, eu máquina de que não me conheço, engrenagens desconhecidas, caminhar desenfreado e descompassado de mim, passos em retorno, revolta, passos que não coordeno.
Espíritos livres: uma recordação
(Nem tudo que reluz é ouro, nem tudo que balança cai, nem tudo que reluz é ouro, nem tudo que balança cai, capoeira balaaança mas não cai)
Como seria se um dia eu acordasse num lugar assim, um pouco tímido, um pouco bonito e desconhecido demais para os meus olhos? Acho que consigo imaginar um lugar mais colorido que o que eu já conheço, um pouco mais fresco e de maiores sorrisos alheios. Talvez eu consiga ver nesse lugar sabores novos, olhares mais atentos e espertos, um pouco mais afetuosos. Se eu pudesse escolher o que veria nesse outro lugar, escolheria uma espécie de composição completa, escolheria acordar ao som de uma voz doce vinda do cair das águas de um chuveiro, e veria esse canto ecoar por todo o recinto. O cantar desperta ao infinito de dentro, desperta para a acústica de si, nosso corpo-caixa-ressonância, emite sons suaves, ruidosos, saudosos de um outro tempo/lugar qualquer, a voz que se rasga no tempo e abre as portas do interior, de dentro pra fora, atingindo extremos, outros corpos, outros tons, outras melodias, um agrupamento de vozes, um arriscar-se no clarear do sol manhoso e preguiçoso de cada manhã. Esse recinto seria cheio de algumas pessoas, e elas trariam cada uma, uma presença viva e única, que se manifestaria de maneira sinuosa e ondulante feito a fumaça de uma chama de incenso, que se propaga lentamente assim que descobre o calor abaixo de si. E em cada novo despertar, o sol se mostraria mais próximo, mais acolhedor e mais presente, pois a cada descuido da sombra ele nos tocaria fortemente o fragmento de pele descoberto, fazendo avermelhar as celulazinhas. Nesse lugar haveria uma manhã em que logo que eu despertasse, seguiria direto para a varanda, pegaria um pincel, molharia seus pelos na água e coloriria de uma cor-tinta-aquarela-qualquer toda a superfície de uma imensidão de possibilidades de uma folha em branco, dado que o papel sairia de um grande nada-tudo-branco para florescer descontínuo e impreciso, por mãos trêmulas de tão felizes. Nessa mesma manhã, haveria um passeio em que eu caminharia por uma estrada de terra e cumprimentaria alguns amigos pelo caminho: Olá senhor bode, estás tão sorridente esta manhã! Senhores cachorros, sois irmãos? Pois parecem-se muito um com o outro, até caminham em passos gêmeos. Senhoras flores arroxeadas, vejo que o sol fez de vossa pele uma bela face-de-pêssego, macia e resplandecente como nunca. E no caminho rumo às águas do rio, um amigo colheria três morangos silvestres de textura rosada e muito parecidos com jujubas, e ele os ofereceria a nós três, os três amigos que rumam ao rio, até que esse gosto pudesse partilhar no paladar de cada um, único e coletivo, um presente tirado de dentro de outro. Gestos em sequência emocionam pela delicadeza, pela diversidade e pela sua aparição quase sempre repentina e encantadora. Três morangos silvestres caem muito bem a três amigos que passeiam pela estrada de terra, três bocas parecem compartilhar melhor um sabor do que uma só, e três mãos que seguram uma fruta nova parecem descobrir melhor a sua textura do que apenas uma. Mas seriam lindos esses dias, sim, a cada novo despertar e adormecer, novos detalhes apareceriam trazendo a surpresa e a delicadeza de gestos girinos, produzidos ao calor de cada novo instante, uma sementinha de girassol a se espalhar por cada novo passo dado sobre a terra vermelha, viva, como vidas que pululam abaixo de nossos pés e acima de nossas cabeças. Haveria um dia em que a música faria crescer em cada um que ali presente se encontrasse, e pareceria que de cada interior sobressaía tímido e depois crescente, um lindo cantar rumo ao fora, rumo aos ouvidos desconhecidos, uma voz como que brotaria do oceano interno de cada coração até o exterior impensado, sempre regido e direcionado pelo bater de tambores ferozes. Tambor, tambor, tan-tan-tan, tan-tan-tan, atingem profundezas da alma, ativam, ativam cada pequena camada, uma a uma, em direção ao interior desconhecido do ser, da alma, da consciência, do corpo físico. Tambor de nós, de incendiar movimentos e freneticidades, de acalmar tumultos intranquilos, de abarcar o som da voz das meninas que se debruçam na cantoria da vida, dos provérbios e das alegrias. Tan-tan-tan de que nem sei de onde vem, tun-tun, tan-tan, tambor de que me sei irmão. E outro dia ainda, me teria como um bebê novamente, como outrora no ventre de minha mãe, num lugar-espaço que certamente eu conhecia, mas cuja memória se tinha escondido por debaixo da pele, bem debaixo dos pelinhos de todo o meu corpo, a ponto de eu me lembrar apenas quando mergulhada por inteiro debaixo d’água e com os ouvidos submersos, ao soar de mãos e vozes marinhas, que me diriam ao som de uma doce canção ser eu filho de Oxum, e calorosas elas me direcionariam àquela memória tão distante, que prontamente se faria avivada dentro de mim, pois a minha pele abriria espaço para um novo reviver. É o mar, é o mar, fé fé chororô. Nhen nhen nhen, como se boiasse a beira de um mar intranquilo, boio sob o rio doce, me deixo envolver por braços tantos, que me ninam num cantar sereno, e parece brotar de mim o mimo e a voz de quem nina. Me embolo numa dança d’água, numa dança de mim só, apesar dos tantos, dança de que já me vi presente, reconheço o correr da pulsação, reconheço o rio, mas ainda não me vejo em Oxum, me vejo sob paredes internas, numa placenta gelada que me faz praguejar dente com dente, arroxeia meus lábios, me traz à outro espaço/tempo. É balanço cantado, ninar mimado, florescer devagar, já sabido mas revivido, nhen nhen nhen, nhen nhen ochororô, é o mar, é o mar fé fé chororô. E rodeada de amigos eu teria as suas presenças de cada dia, em cada roda e em cada fogueira certamente povoadas. E nesses dias eu conheceria um desses felinos negros que normalmente nos afastamos, e essa tal felina mereceria uma menção muito honrosa, pois a sua presença me cativaria a ponto de ser responsável por esse afeto muito depois. Calorosa gata cor de negrume. A simpatia lhe envolve os quadris, os bigodes e o fundo das pupilas verticais. A leveza de ser livre, de ser silvestre, de ser interiorana, emana de seus gestos, de suas patas, de seu corpo tranquilo e frequentemente abandonado ao calor da tarde, sobre a grama de um jardim feliz. Sua companhia agracia mãos que lhe provam a textura macia de pelos alourados e sua coluna cede tranquila aos toques curiosos. E certamente haveria um dia em que um belíssimo presente chegaria assim, de surpresa, no meio de uma brincadeira, das mãos calorosas de um amigo muito especial, ele traria para a roda a sua simplicidade e o seu sorriso de olhinhos fechados, traria o seu presente e o ofereceria à todos, um presente cor d’ouro, e junto dele cantaríamos uma bela canção, pegaríamos com nossas próprias mãos aquele presente e sorriríamos em gratidão, um presente para adoçar o nosso paladar, já doce pelo reflexo de corações melados de açúcar.
O mel chega predestinado
chega por meio de mãos gratas
quer alcançar um grupo maior
Chega o mel junto de uma canção
chega e se faz passar por inúmeras mãos
oferenda de afeto
faz salivar algumas bocas
aquele mel de todos nós
* * *
Tamiris Maróstica mora em São Paulo, é estudante de Letras, se encanta pela natureza interiorana, gosta de pegar frutas do pé e dança ao som do vento. Alguns de seus escritos podem ser encontrados em http://tamarostica.blogspot. com.br/. Email:marostica.tamiris@gmail.com