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Kindra Nikole |
QUATRO TEMPOS PARA UMA CLARICE
Encontro com Haia Pinkhasovna
Olhos oblíquos a mulher soltou a máxima:
eu preciso de algumas horas de solidão por dia
senão me muero me calo me mato
eu preciso de um cigarro. Apressada
sentou no café abarrotado
seus olhos oblíquos carregavam
a tarde sobre os ombros
eu preciso de algumas horas de solidão por hora
ou me muero num segundo
eu nunca recordo os sonhos
ela disse
sou Haia Pinkhasovna
Haia Pinkhasovna
eu preciso de um nome
Macabéa
clarice está no parque
posa para o retrato
e tem nas mãos
aquele vermelho
do hibisco que sangra
olhos fixos
clarice sente-se
[cortada sobre a mesa]
expõe suas sementes
clarice prova o batom
na pele da mão
e atira pedras ao vento
clarice inseto clarice fruto
no parque
posa para o retrato
no parque
posa para o retrato
clarice em carne
fala entre dentes
em seu estranho acento
sobre o poema que abre
a ferida da linguagem
fala entre dentes
em seu estranho acento
sobre o poema que abre
a ferida da linguagem
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Kindra Nikole |
A queda
A verdade é trama no tule porque a verdade não é sinuosa digo: a verdade é rasa e não um mergulho e quando a bailarina salta as saias de filó rasgado brilham no ar ondulando os olhos percorrem o corpo as pernas o torso A verdade é um instante um muro que se rasga que se apaga no escuro a verdade foi tramada a faca e quando a bailarina salta rasga o ar e o tule em um segundo abre-se como asa
Vértigo
Isto é um teatro
isto é um vale de lírios
de lírios de plástico isto
é um vale de lírios eu acho
que isto não é real, mas o que é isto?
isto não é um teatro
e todos correm
todos brincam
porque isto não é a hóstia
do senhor consagrado
isto é um pacto ou
o vácuo do trem que se aproxima
é o terceiro ato
e ninguém mergulhou na piscina
ninguém atravessou o pátio
isto é alimento mas
está fora do prazo
é ainda um lugar vago
porquê isto é lamento
é um vale de lírios ou um quase
porque isto será sempre
um poema inacabado
Jussara Salazar é Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Doutora Comunicação e Semiótica pela PUC/São Paulo. Designer, artista visual e tradutora, como poeta publicou os livros: Inscritos da casa de Alice(1999), Baobá: poemas de Leticia Volpi, (2002), Natália (2004), Coraurissonoros (2008), Carpideiras (2011, Funarte) e O gato de porcelana, o peixe de cera e as coníferas (2014) e Fia (2016, a sair em breve)