PAPEL ESPESSO
a retina captura o instante
cada pedaço esquecido
na microfísica do Mistério:
o vôo das varejeiras
no prato sujo de ontem,
a cadência das pombas
no chão dos homens-relógio;
eis o barulho do mundo:
no prato sujo de ontem,
a cadência das pombas
no chão dos homens-relógio;
eis o barulho do mundo:
as vozes de dentro
não cessam
não cessam
a disritmia do samba
é coragem num sorriso
a melancolia do tango
desvela a dor que pulsa,
é coragem num sorriso
a melancolia do tango
desvela a dor que pulsa,
e o corpo, no fundo,
é um papel espesso
cartão de visita transitório
é um papel espesso
cartão de visita transitório
quero contemplar toda flor
que insiste em nascer no pântano
que insiste em nascer no pântano
SE
se pudesse, enfim, alçar vôo
desfacelariam as linhas tênues
o soco do tempo não seria assim
desfacelariam as linhas tênues
o soco do tempo não seria assim
tão implacável
a vida, largo fio de cobre no osso,
impõe diariamente sua concretude
os homens-relógios seguem a rotina
beijam e sentem o sabor da mesmice
sustentam o amor por suas casas
impõe diariamente sua concretude
os homens-relógios seguem a rotina
beijam e sentem o sabor da mesmice
sustentam o amor por suas casas
de plástico
ah, se pudesse, enfim, alçar voo
o desejo não seria vizinho da culpa
e nenhum afeto seria moeda de troca
o desejo não seria vizinho da culpa
e nenhum afeto seria moeda de troca
nossos corpos
aboliriam o subjuntivo
e a longa espera, inócua,
pelo som dos violões
aboliriam o subjuntivo
e a longa espera, inócua,
pelo som dos violões
sem corda
OS CORPOS E A METRÓPOLE
unidos pelo vento da noite
ao lado dos ancestrais esquecidos,
questiono-me, em silêncio:
ao lado dos ancestrais esquecidos,
questiono-me, em silêncio:
há fixidez no mundo?
por que tantas civilizações
emergem em um corpo?
emergem em um corpo?
ah, nossas mãos
sobrepostas
fagulhas no feno
sobrepostas
fagulhas no feno
cinza
e lá, nas tantas janelas
vejo microcosmos,
estágios de espírito
vejo microcosmos,
estágios de espírito
mas nenhuma sinalização
para a alma
para a alma
enquanto isso...
vagalumes pontuam
o manto de todas as noites
vagalumes pontuam
o manto de todas as noites
uns dormem,
afinal é a morte
de cada dia
afinal é a morte
de cada dia
outros se enrolam
em minúcias, cigarros,
ligam as televisões,
bebem o leite de ontem
em minúcias, cigarros,
ligam as televisões,
bebem o leite de ontem
mas a realidade segue,
toda mistério
toda mistério
e eu, no alto da jangada
numa cabeça intempestiva
numa cabeça intempestiva
questiono-me, em silêncio
se não somos, afinal,
as plantas
se não somos, afinal,
as plantas
no concreto
Nascido em 1992 no interior de São Paulo, em Araraquara, Gabriel Cortilhoé estudante do último ano e cursa história, na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP-Franca. Escorpiano dionisíaco, cidadão cosmopolita e alma inquieta no mar do desassossego, admira a natureza calma de Caeiro, o mundo transitório de Cecília e possui como referência a poesia de Manoel de Barros e Fernando Pessoa. Possui quatro livretos de poesia e vê a escrita como um procedimento terapêutico que é, por vezes, cirúrgico. Gosta de descobrir novos poemas e instrumentos musicais, pois acredita que - como dizia Gullar – a arte existe porque a vida não basta.