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Imagem: Gilad Benari |
A máquina que somos
Somos essa máquina
de carne, amorzinho,
pernas e braços articulados.
Ossos de bom material.
Viscosos, certos líquidos
nos lubrificam, às vezes nos inundam.
Somos essa máquina
de reproduzir o mundo,
ou de povoá-lo.
Nossas almas,
se enguiçarem,
mandamos a Deus: o criador.
Carcaças, ferimos a memória,
dos que fingem não saber
que somos arremedos de qualquer coisa.
Somos essa máquina
de torpor, de ânsia,
amor, tédio, ódio.
Todas as nossas peças
se encaixam
em comovente perfeição.
E por coração
chamamos essa bomba monocórdica
que nos confunde e mantém.
Desvãos
Perdemo-nos
entre os vãos
úmidos
de nossos dedos.
Escapamos
pela nossas pernas
longas
quase velozes.
Cegamo-nos
em nossos olhos
exaustos
do mundo.
Encontramo-nos
no nosso riso
em vias
confusas, arcaicas.
Atravessamos
nossos corpos
tão paredes
entre nós mesmos.
Ouroboros
Se eu te perguntar agora
o que amaste em mim
que poderias me dizer?
"Amei o que de ti podia ter
em tempos de guerra e fome.
Amei cada palavra dita
todos os regalos: noite e dia.
Amei o que em ti completava
o ausente em mim mesmo."
Então incomodada com os tempos verbais,
perguntei
por que não me amas mais?
"Por que me completaste
e não sou mais enigma.
Por que não és mais o silêncio
da palavra esquecida.
Por que te tornaste eu
quando eu queria ser tu"
Já virando o rosto
perguntei com medo
e podes me amar ainda?
"Amarei o que em ti
eu sou: nós.
Amarei o que posso ter
tudo e nada ao mesmo tempo
Amo o que em ti é mais vivo:
eu."
instinto
Por isso
temos unhas:
Para cravar
na pele
na carne
do outro.
Guardando
sob elas
os restos
de nossos desejos.
Para cavar
a terra úmida
sepultando
nossos mortos.
Arranhando
as paredes
do tempo
tão duras.
E se nos tirassem
as unhas
teríamos os dentes
e nosso eterno sorriso faminto.
festa que eu esperei
Dançarei sobre teu cadáver
será em praça pública
às três da tarde
convocarei a todos
o prefeito, a cafetina, o padeiro
o padre, o homem do jornal, o farmacêutico
será feriado a partir desse dia
a cidade irá comemorar todos os anos
tua morte, minha liberdade
não se cobrirão espelhos
não se fará jejum
só mesmo, a procissão até a praça
não rezarão para que renasças
dançarão freneticamente
como eu fiz
sobre o teu cadáver
todo sujo de sangue e areia
todo machucado, esfolado
lindo de tão morto
silencioso
imóvel
e eu serei feliz
sem o fado da tua carne
sem o sopro da tua vida
Poemas publicados no livro Ainda é céu, pela Editora Patuá, de Eduardo Lacerda, em 2015.
Gabriela Silvaé natural de São Paulo, formada em Letras, especialista em Literatura Brasileira (2003), Formação de Leitores (2005), mestre (2009) e doutora (2013) em Teoria da Literatura pela PUCRS, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil. É professora de literatura e escrita criativa nos gêneros poético e narrativo. Tem pós-doutorado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no Centro de Estudos Comparatistas. A pesquisa é sobre as novas identidades de escrita portuguesas. É professora do ECON – Escrita Criativa Online – PT, coordenada pelo escritor e professor Luís Carmelo. É uma das criadoras e coordenadoras da Feira Além da Feira, evento que realiza a terceira edição consecutiva em Porto Alegre. Ainda é céu publicado pela editora Patuá em 2015 é seu primeiro livro de poesia. Tem artigos e ensaios publicados sobre escrita ficcional, escrita criativa e literatura. É uma das organizadoras do Escrita Criativa, pensar e escrever literatura, uma das primeiras publicações sobre o tema no Brasil, o livro foi editado pela PUCRS em 2012 com a coordenação geral de Luiz Antonio de Assis Brasil. É colaboradora do Jornal Rascunho e colunista de literatura do Jornal Sul21.