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Dica do Editor 2: livros raríssimos. 3 resenhas de Vanderley Mendonça

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Chema Madoz

Raríssimo IV

Livro: Gatimanhas & Felinuras, 1994
Autor: Haroldo de Campos e Guilherme Mansur
Editora: Tipografia de Fundo de Ouro Preto,
35 págs.


 


Estranhamente os livros de Haroldo e Augusto de Campos sempre vieram a mim por felizes obras do acaso, tanto quanto eu me dispus a encontrá-los. São obras raras, muitas vezes. Estes dois poetas, apesar da grandeza de suas obras (reconhecidamente universais, dada a quantidade de traduções de seus poemas em antologias para tantos idiomas) publicaram inúmeros livros em micro-editoras, plaquetes e publicações que eles mesmo financiaram. Dentre as mais significativas, por serem seus editores amantes da poesia, estão a Noa Noa, de Cléber Teixeira, e a Tipografia de Fundo de Outro Preto, de Guilherme Mansur, dois tipógrafos que dão sentido à palavra editor. A parceria destes dois herdeiros das artes do livro com Augusto e Haroldo de Campos deu luz a obras de fina beleza, como este maravilhoso "Gatimanhas & Felinuras", livro para amantes de gatos, fellows de felinos, impresso pelo próprio Guilherme Mansur, tipopoeta dono de versos de rara beleza, para serem lidos com luz nos olhos e não só com os sentidos. Nesta pequena e rara obra-prima há outros "parceiros", como Kurt Schwitters, de quem Haroldo traduziu o poema AnnaBlume ("ó amada dos meus vinte e se7e sentidos, eu te amo! — tu, te, ti, contigo, eu te, tu me."), numa magistral composição tipográfica de Guilherme, impresso em papel feito à mão e encartado no livro. Também constam poemas de Paul Klee e Christopher Meddleton, poetas na arte de amar os gatos, com seus versos transfelinizados por Haroldo, autor de boa parte dos poemas, entre os quais "Lady Bi". Obra-prima, ouro da Babilônia. 


Lady Bi

a gata lady bi
(née bichana)
fixa-me os olhos
de esmeralda líquida
seu pelame - casco-de-tartaruga –
ruivo-ouro e negro-pelúcia
contra fundo
branco
brilha
e muda
(patas prênseis
segurando o ar)
fala-me
mudez entrecortada
de arrulhos
- plena -
como um discurso
amoroso."
  
Raríssimo V

Livro: Escrever, 1994
Autor: Marguerite Duras
Editora: Difel (Lisboa)
136 págs.


"Certos escritores estão apavorados. Têm medo de escrever. O que talvez tenha acontecido, no meu caso, é que eu nunca tive medo desse medo." ESCREVER, de Marguerite Duras, é uma reflexão sobre a solidão que implica o ato de escrever, essencial e necessário para conduzir o escritor à criação. Uma narrativa quase poética, confessional, de pensamentos impossíveis de se evitar quando se está só, em busca da matéria bruta da palavra, da substância do escrito que ganha verdade, "a beleza do literariamente infinito", como disse um de seus mais contundentes admiradores, o escritor catalão Enrique Vila-Matas.
Para Duras, é preciso ser mais forte do que aquilo que se escreve. É preciso escrever com a força do corpo, sermos mais fortes do que nós mesmos para abordar a escrita, que ora é dor, ora o lado mais violento da felicidade. Escrever, enfim, é diagnosticar a doença da esperança, a doença da morte. Uma morte que não morre, que vive na memória ou na escrita: "A morte de qualquer um é a morte inteira. Qualquer um é todo mundo." Há uma certa loucura na solidão do ato de escrever. E escrever é tentar saber aquilo que escreveríamos se escrevêssemos.



Raríssimo VI

Livro: Nzoji, 1979
Autor: Arlindo Barbeitos
Editora: União Angolana de Escritores
58 págs.


"olhos de peixe são teus dedos oh meu barco / oh meu barco à busca de continentes", este verso do livro Angola, Angolê, Angolema (editado em 1976 e talvez o único conhecido em círculos fora de Angola) mostra a força de uma poesia que mesmo negada pelo mercado editorial americano ou europeu, normativistas e cegos para o que não é "premiado", supera em muito o que restou daquilo que se sabe como poesia (reescrituras, quase sempre, e narrativas). Nzoji (Sonho, em quimbundo) é um pacto com a oralidade, com a imagem, com a língua literária da poesia. Este livro de Arlindo Barbeitos, raro como sua poesia, é capaz de tocar o corpo da palavra, tomar a palavra e dela fazer uma imagem transcultural, que não se satisfaz com técnica, nem com crítica. "Em Angola, o arco-íris é ligado à imagem da cobra e representa tal como esta um poder maléfico. Assim, o bom entendimento de muitas figuras pressupõe o conhecimento do seu significado", diz o poeta em prefácio do seu livro, e sempre é ele quem escreve os prefácios dos seus livros.
“para além dos portões da lonjura / quem monta sentinela / às caravanas de palavras / sem palavra". Em Nzoji, nada é redundante e excessivo. Canto em ciranda de sonhos para reconquistar o tempo que a literatura nos deve: "a menina / descuidada / ia / atirando pela janela / um tempo / grande como o céu."


 VANDERLEY MENDONÇA é poeta, tradutor e editor dos Selos Demônio Negro e Edith. Traduziu, entre outros livros, Poesia Vista, antologia bilíngue do poeta catalão Joan Brossa (Ateliê, 2005), Crimes Exemplares, de Max Aub (Amauta, 2003), Nunca aos Domingos, de Francisco Hinojosa (Amauta, 2005) e Greguerías, de Ramón Gómez de La Serna (Selo Demônio Negro, 2010). É autor do livro ILUMINURAS, Ed. Patuá. 2013.




 

 



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