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Santidade - Bruno Bandido

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Vincent-Van-Gogh-The-Stone-Bench-in-the-Garden-at-Saint-Paul-Hospital


Olhar a grama amarela me deixa contente, ela dizia. Estava internada junto daqueles junkies e maluquinhos em geral. Tinha esse grande jardim mal cuidado – escolhiam sempre alguns dos loucos habitués pra cuidar dele e, um dos designados, pegava o regador e ficava despejando água no mesmo lugar. Quando a água acabava, ele gritava GASOLINA! pruma menina que parecia não ter problema algum, mas que provavelmente tinha todos os problemas do mundo, e ela vinha correndo e enchia o regador e o devolvia sorridente pra que o maluco voltasse a despejar toda aquela água no mesmo lugar. A brincadeira durava uns trinta minutos, então ele limpava o suor da testa e dizia Pra mim deu por hoje, e voltava pra dentro do casarão. Algumas vezes, depois de me despedir de Renata, ele e eu nos cruzávamos pelos corredores. Eu ficava com vontade de perguntar se ele queria ser ator de cinema, sei lá por que diabos, talvez pelo jeito que limpava a testa. Se eu pudesse fazer alguma pergunta seria essa. Na verdade, eu podia. Apenas não fiz. Nas primeiras visitas eu ria de todo aquele mise-en-scène da jardinagem e Renata só seguia admirando a grama seca, aliviada. Com o tempo, fui parando de prestar atenção no local e me concentrando nela. Parecia cada vez mais longe, mais louca.
Tu tá te transformando numa bela de uma santa, eu dizia, e ela ria e fazia força pra não mostrar o sorriso com os lábios e fingia que não prestava atenção. Depois de uns meses, o maluco do regador sumiu. Colocaram um viciado que parecia mesmo querer se reabilitar. Ele podava os arbustos e deu um jeito na irrigação daquela grama. Ficou verdinha, eu disse. Pois é, ela disse. O que aconteceu com o cara do regador? eu perguntei. Quem? ela perguntou e eu deixei pra lá.
Renata tinha uma filha que também era filha do meu melhor amigo Fred Fudido. Por algum motivo ele havia se distanciado de tudo aquilo e, depois disso, eu já tinha dado uns beijos em Renata e colocado a mão dentro de suas calcinhas. Nada além disso. Havia os remédios e havia sua filha - sempre na sala assistindo TV - que às vezes nos chamava pra contar qualquer coisa. Ela era um barato e, como toda criança subestimada, parecia muito esperta. Quando Renata pegava no sono, nós dois íamos caminhar pelo bairro e tomar um sorvete. Eu fingia que podia ser tudo aquilo e ela fingia que conseguia entender. Na época da primeira internação, a menina ficou com a avó e eu a visitei algumas vezes até a velha me proibir de ir lá. Ela dizia que eu ajudei em toda a destruição, que nossa turma toda devia tá trancafiada com Renata e que, igual ao Fred Fudido, uma hora eu ia sumir.
Fred morreu um tempo depois. Renata tava na sua segunda internação e eu e minha namorada da época fomos dar a notícia. Ela chorou calada e foi uma das coisas mais tristes que eu já vi. Olhei pra grama e ela tava ali, verde pra caralho. Minha garota estudava psicologia e conhecia alguns funcionários do lugar e nos deixaram ficar até mais tarde com ela. A gente tava bem abalado. A gente ficou lá até de noite e chamaram Renata pra tomar banho e remédios e jantar. Uns pacientes tavam jogando Banco Imobiliário na sala de convivência e a menina que era encarregada de encher a água do regador rodava pela sala, procurei pelo maluquinho e nada. O ex-usuário que começou a cuidar do jardim também não. Nunca mais vi nenhum dos dois. A menina eu ainda vi na última vez que visitei Renata uns dois anos depois durante sua quarta ou quinta internação. Nesse dia, caminhei até a menina e perguntei se ela lembrava do cara que regava o jardim. Quem? ela disse e foi só essa a pergunta que eu fiz. Ela parecia bem mais velha. Havia envelhecido muito mais rápido que Renata, por exemplo. Ela era feia e tava um pouco acima do peso, mas ainda assim não parecia ter problema algum.
Peguei o ônibus pra Porto Alegre e fiquei pensando em Fred Fudido, na filha dele e na crueldade do mundo que, na verdade, pode ser chamada apenas de mundo. Cada vez que a gente perde um amigo é como se a morte chegasse um pouco mais perto, dando um alô. E a gente morre um pouco também. Perder um amigo causa uma dor que beira a derrota. Quantas delas a gente vai colecionar pelo resto da vida? Há a tendência quase inevitável de que aumentem, e vamos seguir assim – cada vez mais derrotados e mais mortos, buscando lembranças doces em momentos de contemplação. Fred Fudido curtia escutar uns sons jamaicanos e fumar maconha dentro do seu Corcel II. Um clichê besta. Foi assim seu primeiro encontro com Renata. Eu, minha mina e eles dois dentro do Corcel, bebendo vinho durante a madrugada, andando pelas ruas mais vazias da cidade, Fred falando sem parar e a gente só rindo ou assoprando fumaça, fazia frio e a gente se sentia os reis da nossa própria merda. É nisso que penso quando vejo a grama seca em algum jardim qualquer. Foi sobre isso que falamos um dia no jardim do hospital – ela sentia falta dele, Eu só beijei dois homens na minha vida, ela disse, Fred e você.
Não era verdade. Em sua primeira internação, uma enfermeira me contou que viu Renata e um dos internos se agarrando escondidos em um ambiente pouco frequentado do hospital. Inclusive brinquei sobre isso no mesmo dia, ela ficou com o rosto vermelho e fez questão de dizer que o cara não era nenhum louco. Não tanto quanto Fred Fudido e não tanto quanto eu. Que ele era apenas puro. Coitada de ti, eu disse, Fred e eu? Dois homens muito parecidos, ela disse, séria, com um ar de lamento. Eu não quis comentar nada a respeito, mas, provavelmente, ela percebeu minha face de discordância e disse que um dia eu entenderia uma porção de coisas. Já entendo algumas, eu disse. Tu não parece entender nada, ela disse. Ela era lúcida demais praquilo tudo.
Voltei diversas vezes a essa conversa. Primeiro pensei que Renata devia ter esquecido o dia em que impliquei com ela por beijar um interno e, por algum motivo, resolvido contar a pequena mentira. Achei mais razoável que ela tivesse esquecido a conversa e não o beijo. Hoje em dia não penso assim. A palavra puro não me deixa. Talvez o interno fosse puro demais pra ser considerado um homem por Renata. Talvez ela só tivesse mesmo beijado dois homens e, além deles, aquele cara tão perdido e sozinho quanto ela. Perfeito e quebrado ao mesmo tempo, enquanto Fred e eu (e os homens em geral) somos apenas quebrados. Talvez ela nem se considerasse uma mulher. Renata já era uma espécie de santa.



*Publicado originalmente no livro Tem um palhaço agressivo e um hooligan triste em algum lugar aqui dentro.



Bruno Bandido nasceu em 1990, na fronteira com o Uruguai, passou pro Porto Alegre, Salvador e hoje mora em São Paulo com sua mulher e mais dois vira-latas. Em 2014, lançou o livro de contos Tem um palhaço agressivo e um hooligan triste em algum lugar aqui dentro pela editora Bartlebee. Este ano, seu conto Fonte do Boi foi publicado pela Bar Editora. Também prepara um livro de poemas chamado Histórios de Gólgota. Escreve no blog brunobandido.wordpress.com.

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