![]() |
Ilustração: Alexander Bazarin |
SONETO FORA DE MODA
Quem vê, Senhora, claro e manifesto,
O céu escuro, de pérolas repleto,
Cuida saber a casa vendo o teto,
Tenta conhecer a alma pelo gesto.
Sente acender a chama do protesto,
Quem tenta percorrer caminho reto
Mas cuida que ele é vão, torto ou incompleto:
Conhece no correto o desonesto.
Mas amor não se vê nem se conhece;
É dia ensolarado que anoitece;
É casa descoberta: é a alma a trair.
Tanto mais sua chama arde, escurece.
Seu caminho não sei quem o atravesse,
Que atravessar é entrar para sair.
LIRA 5B
Mas é esta cerveja
Que logo sorvida
O peito inflamava
E a mente aturdida
Aos ventos lançava?
Sem brisa, sem vida,
Mal ela se espuma,
O fogo apagou.
É esta cerveja?
É esta; mas eu
O mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.
Não há um que seja,
Dos livros que eu lia,
Por noites vidrado,
Cuja poesia
Não tenha entornado.
Quem é que esvazia
Um livro fechado
Se não desbotou?
São estes os livros?
São estes; mas eu
O mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.
Tal como uma igreja
Tua alma era o sítio onde
Sempre me encontrei.
Tal teu corpo esconde
Um sítio: e eu era o rei.
Por mais que eu ronde
Os sítios que sei,
Marília mudou.
São estes os sítios?
São estes; mas eu
O mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.
É DIA
É dia
há um tempo considerável.
Então é preciso fazer minha ronda
sem cavalos,
sem cães,
sem neve
e sem lanterna,
porque é dia.
Sondo o apartamento para constatar que:
a mesa é uma mesa
as cadeiras, cadeiras
e o meu sofá está desocupado.
Apelo para os livros,
mas estão em recesso.
O que é o amor senão uma mesa?
Ele existe. É amor porque é amor. E pode tanto estar vazio, quanto quebrado.
O que é a morte senão uma cadeira?
Morte é morte e eu estou aqui sentado.
Ode ao beija-flor
Meu amigo beija-flor,
A noite visita o dia
Quando mesmo no calor
Balanças a capa esguia.
Teus gestos desesperados
Lembram o esforço final
Dos que partirão afogados,
Porém flutuas sem nau.
Como, debaixo das asas,
Trazes a floresta inteira?
Semeando em nossas casas
Desde o ramo até a palmeira?
Cantas, então, na sacada...
De que batalha saístes?
Afias tuas espadas
E revoa uma ode de Keats.
Se conversar não podemos
– sentar num bar do caminho! –
Tua taça, pelo menos,
De manhã povoo de vinho.
*
Quando eu tinha uns dez anos
Meu pai dizia:
"Vai lá, filho. Joga até o pé doer."
Meu pai dizia:
"Vai lá, filho. Joga até o pé doer."
Eu achava exagero.
Jogava um pouco.
E marchava para casa.
Jogava um pouco.
E marchava para casa.
Hoje devo ter a idade que meu pai tinha
Quando eu tinha dez anos.
Quando eu tinha dez anos.
Pego nos braços do meu filho invisível,
Bagunço seus cabelos de algodão doce e digo:
"Vai lá, filho. Joga até o pé doer".
Bagunço seus cabelos de algodão doce e digo:
"Vai lá, filho. Joga até o pé doer".
Del Candeias nasceu e mora em São Paulo. Publicou o livro de contos Dois de Novembro (2012), os de poesia Uma dose de cortisol e uma porção de serotonina (2006) e Cantos do Ermo e da Cidade (2015), o romance A Louca (2007) e o juvenil A Flauta Mágica e o Livro da Sabedoria. Alguns de seus textos fizeram parte da Antologia M(ai)s Sadomasoquista da Literatura Brasileira, do jornal O Casulo, da revista Celuzlose, da antologia É que os Hussardos chegam hoje e da revista Samizdat. Além desses trabalhos, o autor traduziu a peça A boa alma de Setsuan, de Brecht.