Apresento aqui uma pequena e insuficiente seleção da obra poética de Max Martins, uma vez que recolho praticamente um poema de cada um dos seus livros, ainda que na firme intenção de que o leitor vá expandindo essa leitura, ao verificar certos aspectos das virtudes da feitiçaria do poeta. Justamente agora que não se pode ter mais aquela atitude “fim de mundo” do capitão Nemo em relação à obra acidentada e remota do poeta. A Editora da Universidade Federal do Pará, ed.ufpa, está reeditando em volumes independentes a poesia completa de Max. E já estão disponíveis, com distribuição nacional, os seguintes títulos: O estranho, Caminho de Marahu, Colmando a lacuna, Risco Subscrito e Para ter onde ir. Finalmente a poesia de Max Martins se desvia da rota comum dos naufrágios de tantos outros grandes projetos artísticos na Amazônia, e, ao que parece, não ficará submersa pelas águas barrentas e agitadas de Marahu. Ou, para usar uma metáfora atribuída a Borges, ao se buscar pela obra do poeta não precisaremos mais recorrer a um sobrenatural alfarrabista de Tlön ou Uqbar. A poesia com frequência dá passos, sem avisar com antecedência.
Ney Ferraz Paiva
Uma estrela trêmula
Tuas antenas trêmulas
0 som
(subterrâneo)
que o teu silêncio chama
A palavra nenhuma que trazes para o almoço. Pães e peixes
Para quem?
E o poema redemoinha no sono que rasgas.
Como rasgas esta noite enrolada em si mesma.
É entre centelhas que plantas o teu jorro.
É entre espinhos e pedras virgens que celebras essa estrela. Todos os astros.
Colmando a lacuna, 2001
No lugar do medo
Todos os dias aqui tu te observas
E ainda está oculta (aqui) a tua semente
E ainda está oculta (aqui) a tua semente
Comum será a tua raiz
comum
ao olor da fêmea que atua no teu leito
comum
ao olor da fêmea que atua no teu leito
Sê criativo o dia todo
Te empenha o dia todo cauteloso
voa
mesmo hesitante sobre o teu malogro
Te empenha o dia todo cauteloso
voa
mesmo hesitante sobre o teu malogro
Quer sigas o fogo, quer sigas a água
sê só do fogo ou só da água
(pois que não há caminho
e a lei
é o inesperado)
sê só do fogo ou só da água
(pois que não há caminho
e a lei
é o inesperado)
Ainda oculta (aqui) a tua semente
está
está
Para ter onde ir, 1992
Saltimbanco
O não mais espumoso vinho dos abismos
O cauterizado testemunho de um instante de beleza:
O ritmo do oceano
O palco
e a metade da cama para o falso poema
O saltimbanco
Ou o sangramento
da perda de um deus a cada assalto
O cadafalso
O semidestroçado frêmito de um destino cego de antemão
O não mais aceito rito do ofício O ofício:
esta rasura do corpo sendo esquecido
O esquecimento
O desabitado segredo das palavras
O cauterizado testemunho de um instante de beleza:
O ritmo do oceano
O palco
e a metade da cama para o falso poema
O saltimbanco
Ou o sangramento
da perda de um deus a cada assalto
O cadafalso
O semidestroçado frêmito de um destino cego de antemão
O não mais aceito rito do ofício O ofício:
esta rasura do corpo sendo esquecido
O esquecimento
O desabitado segredo das palavras
Marahu Poemas, 1991
Túmulo de Carmencita, 1985
Este não é o túmulo, é o poema. Aquele
outrora erguido à sombra, ao sono
de teu nome-carmen, Carmencita
Arévolo
de Vilacis, tua árvore
tua raiz, teu ventre ponderoso
pátria
(a que descubro minha
versão de não traído, não
assenhoreado)
canto
chão
jazigo
terra
que ainda aqui agora amo: abro
Tua palavra-caixa atro-vazia, muda
desistidamente muda
Soledad
desistidamente muda
Soledad
60/35, 1985
Teu poema
Sonha-me! que te sonho: tenho esta viagem
que tua estrela crespa, Margaret, das axilas sopra
o herzoguiano barco (au fond
des golfes bruns)
se debatendo, bêbado
nesta garganta
que tua estrela crespa, Margaret, das axilas sopra
o herzoguiano barco (au fond
des golfes bruns)
se debatendo, bêbado
nesta garganta
Barco
que arrasto e sirgo selva adentro
(águas
caídas, ecos
da palavra madura, esperma, água sombrada)
e o meu Poema indo
ao léu das febres, ao
que arrasto e sirgo selva adentro
(águas
caídas, ecos
da palavra madura, esperma, água sombrada)
e o meu Poema indo
ao léu das febres, ao
que almejo em ti –a Outra Margem
Caminho de Marahu, 1983
2
E nós dois, dois
fálus críticos, acariciando esta cripta
que doura em sentidos, caverna
de grades negras, selva
de pura escrita, rubrica indecifrada:
fálus críticos, acariciando esta cripta
que doura em sentidos, caverna
de grades negras, selva
de pura escrita, rubrica indecifrada:
(poesia)
teu nome é Não em cio e som farpados
cilício escrito, escrita ardendo (dentro,
se revendo), fera
do silêncio úmido, se lambendo, lábil
labiríntima E esta língua
de pura estria ávida se desfraldando
lâmina
e se ferindo, se punindo:
cilício escrito, escrita ardendo (dentro,
se revendo), fera
do silêncio úmido, se lambendo, lábil
labiríntima E esta língua
de pura estria ávida se desfraldando
lâmina
e se ferindo, se punindo:
A fala entre parêntesis, renga com Age de Carvalho, 1982
Où sont, Villon?
ou sombra onde as neves sonho o som sem nome
sem nome ou sombra neves sonho o som
o som sem nome ou sombra onde as neves do sonho
do sonho sem ou sombra (nome): as neves
as neves do sonho som sem nome ou sombra onde
sem nome ou sombra neves sonho o som
o som sem nome ou sombra onde as neves do sonho
do sonho sem ou sombra (nome): as neves
as neves do sonho som sem nome ou sombra onde
neves
sem sombra
ou
do sonho onde o som são neves
sem sombra
ou
do sonho onde o som são neves
onde
o som
o som
as neves
sem nome
sem nome
do sonho
ou sombra?
ou sombra?
onde as neves do sonho
o som sem nome ou sombra?
o som sem nome ou sombra?
O risco subscrito, 1980
O olho novo vê do ovo
se
fora do foco
do ovo o olho
do ovo
é cego
fora dos fogos
do olho o ovo
do olho
é oco
como
do fundo do olho
extirpar o vago
escuro
e ser o ovo vendo?
no centro do ovo
fabricar a gala
clara
e ver o olho sendo?
– é como (ver) em mira
amorosa
o olho
rever (ter) um giro
geratriz
o ovo
ou
nos interstícios do ventre
(claro-escuro da página)
in
vol ver
o
ovo
obviar o olho
– indo e vindo –
ovante
(olho e ovo
raiz e velo
a um valo
paralelos)
para lê-los
cortar a língua-linha do discurso homem
e seu novelo
o nó por si
se descascando
por si se desvelando
o elo V do ovo
o dito e feito
fito
vero símil
abolido o entrante
se entre-abre
O
O) LH (O
O
V
O
entre
VÊS
XX
a vida
uni
VÊS
o
mundo
O Ovo Filosófico, 1976
Koan
A pá nas minhas mãos vazias
Não a pá de ser
mas a de estar, sendo pá
lavra no vento
nuvem-poema
arco
busco-te-em-mim dentro dum lago
max
eKOÃdo
e a face ex-garça-se verdemusgo
muda
mas a de estar, sendo pá
lavra no vento
nuvem-poema
arco
busco-te-em-mim dentro dum lago
max
eKOÃdo
e a face ex-garça-se verdemusgo
muda
(Quem com ferro fere
o canto-chão
infere o
silen
cioso
poço?)
o canto-chão
infere o
silen
cioso
poço?)
pá!
Cavo esta terra – busco num fosso
FODO-A
agudo osso
oco
flauta de barro
sôo?
Cavo esta terra – busco num fosso
FODO-A
agudo osso
oco
flauta de barro
sôo?
Silentes os sulcos se fecham
espelhos turvam-se
e cavo sou
a pá nas minhas mãos vazias
espelhos turvam-se
e cavo sou
a pá nas minhas mãos vazias
H’éra, 1971
1926 / 1959
Já então é tudo pedra
os dias, os desenganos.
Rios secaram neste rosto, casca
de barro, areia causticante.
E onde outrora o mar
–os olhos – búzios esburacados.
os dias, os desenganos.
Rios secaram neste rosto, casca
de barro, areia causticante.
E onde outrora o mar
–os olhos – búzios esburacados.
E tudo é duro e seco e oco,
o sexo enlouquecido
0 osso agudo
coberto de pó e de silêncios.
o sexo enlouquecido
0 osso agudo
coberto de pó e de silêncios.
Havia uma ferida, a primavera
que já não arde nem desfibra – seca
a flor amarela escura
anêmica impura
–rato no deserto
que já não arde nem desfibra – seca
a flor amarela escura
anêmica impura
–rato no deserto
caveira de pássaro
exposta na planura
exposta na planura
Anti-Retrato, 1960
Estranho
Não entenderás o meu dialeto
nem compreenderás os meus costumes.
Mas ouvirei sempre as tuas canções
e todas as noites procurarás meu corpo.
Terei as carícias dos teus seios brancos.
Iremos amiúde ver o mar
Muito te beijarei
e não me amarás como estrangeiro.
nem compreenderás os meus costumes.
Mas ouvirei sempre as tuas canções
e todas as noites procurarás meu corpo.
Terei as carícias dos teus seios brancos.
Iremos amiúde ver o mar
Muito te beijarei
e não me amarás como estrangeiro.
O Estranho, 1952
Representou a renovação da literatura no século XX e colocou o Pará numa posição de destaque na literatura nacional, embora sua obra ainda seja pouco conhecida.
Max Martins dedicou-se à poesia por toda a vida, tendo transitado entre modernismo, concretismo e experimentalismos. Autodidata, seguiu seu percurso temporal próprio. Ao receber aposentadoria como servidor público, incorporou outra: a de escritor, transformando-se no primeiro caso de escritor que se aposenta e recebe benefícios por ter exercido, por mais de trinta anos, a poesia.
Obras:
- O Estranho (1952)
- Anti-Retrato (1960)
- H'Era (1971)
- O Ovo Filosófico (1976)
- O Risco Subscrito (1980)
- A Fala entre Parêntesis (com Age de Carvalho, à moda da renga, 1982)
- Caminho de Marahu (1983)
- 60/35 (1985)
- Poema-cartaz Casa da Linguagem (1991)
- 3 Poemas - folder com desenho, colagem (1991)
- Marahu Poemas (1985)
- Não para Consolar - poesia completa (1992)
- Para ter Onde Ir (1992)