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Pedro vai à Terra - Fernando Paiva

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Ilustração: Jeff/deviantART


Sofro do que chamam de terrismo psicossomático: tenho saudade da Terra sem nunca ter pisado lá.

Minha avó materna era o meu elo com o planeta azul, a última terráquea que restava na família. Chamavam-na de eterna. Depois do 150º  aniversário parou de comemorar a data. Estava cansada de converter a idade para anos terrestres.

Desde que minha avó faleceu, estou obcecado pela ideia de conhecer a Terra. Preciso entender de onde vim, por que estou aqui, para onde vou. O resto do universo me parece pequeno, porque irrelevante. A Terra, por outro lado, é infinita em minha ignorância.

Decidi comprar um chacri toi. Vou mandá-lo para onde minha avó morou antes da diáspora espacial, o Rio de Janeiro. Tenho a latitude e a longitude exatas da sua casa, num bairro que chamavam de Laranjeiras. Quero encontrar algo, um grampo de cabelo, uma escova de dentes, um telefone celular, qualquer vestígio da presença dela na Terra que possa ser meu também, por extensão.

Comprei um modelo antigo de chacri toi que estava em promoção. Vou chamá-lo de Pedro, em homenagem ao meu avô, que não cheguei a conhecer. Gosto de nomes antigos dos tempos da Terra.

Transformei meu quarto em um pequeno centro de controle com conexão interestelar de baixa latência. Empurrei a cama para junto do armário e tirei a poltrona. É preciso abrir espaço para me movimentar livremente enquanto controlo Pedro.

Descobri que um amigo conhece um amigo que conhece um cara que faz transporte clandestino para a Terra, ou, mais especificamente, para onde um dia foi o Brasil. A nave desce durante a temporada de raios. É arriscado, mas dá para pagar. Reservei uma passagem de ida para Pedro.

No ombro direito de Pedro colo a bandeira lusófona. No esquerdo, por precaução, o símbolo da neutralidade universal. É uma forma de evitar confrontos com membros de gangues que vagam pela Terra.

A viagem foi tranquila. Havia uns quarenta chacri tois pelo menos. Todos imigrantes ilegais, sem autorização para viajar à Terra. As motivações são diversas, desde mineração clandestina até coleta de cogumelos alucinógenos, cada vez mais valiosos no espaço. A passeio, creio que apenas Pedro. Depois do pouso, nos dispersamos: cada um numa direção, torcendo para não ser atingido por um raio na cabeça.

No caminho vemos várias escavações arqueológicas. A maioria abandonada pela metade, outras a pleno vapor. Virou moda voltar à Terra em busca do passado.
Chegando ao nosso destino, a primeira coisa a fazer é instalar um para-raios, item de primeira necessidade. Em seguida, ligo a câmera esférica de vídeo e inicio uma gravação. Quero registrar esse momento. Mas a verdade é que não há muita coisa a ser vista. A natureza cobriu tudo.

– Foi aqui que minha avó morou na Terra. Talvez eu devesse sentir alguma emoção, mas não sinto nada. Será que Pedro sente algo?

No segundo dia de escavação recebemos a visita inesperada de uma chacri toi retrô com o símbolo do amor universal pelos entes vivos e presumidamente vivos ornamentando seu ombro esquerdo e a bandeira lusófona no direito. Ela pergunta o que faço ali.

– Estamos em uma missão arqueológica.
– Estamos?
– Eu e Pedro.
– Quem é você? Quem é Pedro?
– Este chacri toi é Pedro. Eu sou eu.
– Prazer, esta chacri toi é Madalena. Eu sou eu também.

É uma questão de segurança não revelar quem está no comando de um chacri toi, ainda mais tendo chegado clandestinamente à Terra. Para desanuviar o clima, eu cito minha variação de John Donne pós-diáspora:

– Nenhum chacri toi é uma ilha isolada.

Madalena ri. Meu coração bate mais forte. O processador de Pedro esquenta.
Madalena se junta a nós nas escavações. Ela não conheceu minha avó, nem sequer me conhece, no máximo acabou de conhecer Pedro, e mesmo assim cava com o ímpeto de quem procura um amor enterrado.

Não sei quem está mais cansado, Pedro, Madalena ou eu, trancado no meu quarto sem comer nem beber direito desde que aquela viagem começou. Depois de uma semana cavando não encontramos nada de relevante que pudesse ser atribuído à minha avó. Decreto a missão encerrada. É frustrante, reconheço. Não existe nada que me vincule ao passado terrestre da humanidade. Começo a duvidar da história que me contam, da vida, deste universo, deste tempo, de Pedro, de Madalena, de mim mesmo.

Esta era uma viagem para que eu me conhecesse melhor e agora me conheço menos ainda. Aliás, me sinto mais como Pedro do que como eu mesmo.

– Crise de identidade humano-chacri-toiniana – diagnostica Madalena.
– Eu também sofro disso.

Pedro e Madalena se abraçam, tão fortemente quanto dois chacri tois poderiam se abraçar. E eu me sinto no corpo metálico de Pedro, captando, de alguma forma, o calor de Madalena. Sinto que ela me entende. Ou talvez me ame, como ama a tudo e a todos, vivos ou presumidamente vivos. Por alguns segundos, enquanto dura o abraço, eu sou Pedro, uma máquina, e sou também eterno. E concluo que definitivamente não somos uma ilha.

Madalena propõe que sigamos viagem juntos. Ela quer conhecer o Norte do antigo Brasil. Quer conhecer o que restou da Amazônia. Pedro aceita o convite.


E assim iniciamos uma longa viagem, sob uma chuva de raios, eu-Pedro e alguém-Madalena, à procura de novos amores, da cura para o terrismo psicossomático, ou apenas aguardando o tempo passar e nossas baterias acabarem... para eu voltar a ser quem sempre fui ou achei que fosse nesta vida fora da Terra. 


Conto de "Depois que o tempo passar, Madalena" (7letras, 2016), lançado esta semana.



Fernando Paiva nasceu em 1977 no Rio de Janeiro. É jornalista especializado na cobertura do mercado de tecnologia móvel. Desde 2011 edita o site Mobile Time. É autor dos livros Carta para Ana Camerinda (Ibis Libris, 2004), Salvem os monstros (7Letras, 2010), Somente a verdade(7Letras, 2013), Pedro vai à Terra (Megamíni, 2015) e Depois que o tempo passar, Madalena (7Letras, 2016). É também compositor e guitarrista das bandas A Última Peça e Luisa Mandou um Beijo.

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