Por Marcelo Ariel
Nota: A BreveEntrevistaResenhaé uma experiência de fusão dos procedimentos da entrevista com os da resenha, uma tentativa de tornar a entrevista menos focada na biografia e a resenha um pouco mais densa, inicio a experiência com o poeta e ensaísta Maurício Salles Vasconcelos, conversamos sobre o pensamento e conceitos em torno de seu livro de poemas Caderneta-Maquete lançado pela Editora Córrego em Abril de 2016.
1-) Sinto que uma das questões do livro é a de uma fusão de temporal idades, um movimento onde o tempo se converte em espaço para além de uma historiografia e na direção de um ' presente contínuo'que é uma 'energia da presença' , você concorda com essa minha leitura ?
Importante, você destacar esse elemento do presente contínuo, pois só o captei no instante de compor os poemas, esquecendo-me depois do ponto de fusão que se cria com a “energia da presença”. Ou seja, são corpos caminhantes as forças motoras do livro. A partir da atuação na vida da cidade – um ativismo, recorrente em todo o livro, a envolver a Política dos Parques e o direito ao trânsito livre, a uma existência urbana devolvida aos pedestres – cria-se uma ligação com a infância. A figura do pai, na última parte – MUSICAL – propicia o encontro com o tempo anterior, tendo o táxi como meio de transporte, mas também a passagem para o plano da dança coletiva que a menção ao cinema musical favorece. Caderneta-Maquete acaba, então, desenhando a reunião de diferentes polos do tempo no espaço da cidade tornado eixo de um continuum na descontinuidade, eu diria.
2-) Me parece que os poemas do livro, poemas-notações, registros da presença no sentido heideggeriano talvez, se movem em uma dimensão próxima do onírico, no que ele possui de hiper realidade, você poderia falar um pouco sobre isso?
O onirismo não se desliga de uma dimensão maquínica, sempre referida em Caderneta-Maquete. Entre os acessos downloads viabilizados pelo timing das plugagens informacionais (dadas numa esfera de imaterialidade a correr, a “baixar” durante as horas do sono) e os corpos ocorrem planos de contiguidade.
O livro aponta, assim, para uma dinâmica sempre ativa de captura entre os diferentes planos do real e da escrita. Penso que o ato de grafar hoje, inseparável das máquinas de impressão/arquivamento conexas a recursos audiovisuais, torna o texto de literatura e especificamente o poema uma escavação capaz de baralhar os estratos do sonho com uma imediata configuração na vida imediata. As menções ao onírico em Caderneta...– por exemplo, Breton (certos traços de aparição/desaparição do Amor Fou) e os cortes não-realistas da imagem cinematográfica (sejam em Debord sejam no cinemusical) – atendem ao interesse de fazer da imaginação e das projeções da poesia um palco aderente à realidade do presente. Algo indissociável da captação de elementos dotados de uma complexidade e um sentido combinatório, muito mais orientados para uma intervenção na ordem do dia – ou na “loucura do dia” (como pensa Blanchot), em lugar dos recônditos noturnos. Circuitos intercomunicantes se criam, pois. Novos espaços para o livro, para a poesia se apresentam em torno de uma escrita-anotação, num desbordamento da pauta lírica, a exceder a linearidade de um poema atrás do outro como comumente se alinha o volume poético legado até hoje através de uma longa história de sons, palavras e imagens que ritmam (lembra Rimbaud na Carta do Vidente) a ação de mulheres e milhares no tempo.
3-) A palavra ' Maquete' possui dobras de significado, sendo a principal um devir espacial que aponta também para um pensamento de intervenção na cidade, na vida da cidade, me parece que há uma narrativa do espaço que ' se diz' através de uma dimensão do fenômeno, inclusive de ' perda do eu', de dimensão digamos mística de um esvaziamento e de uma transparência do mundo, como você vê estas questões do eu e da cidade no livro?
É uma poesia da cidade, sim, que se apresenta aí. A pauta que o espaço urbano propicia para a arte, a política, para o que torna mais vivo a passagem de cada existente, eletrizou a escrita de Caderneta-Maquete. O traço de anotação, o qual quis frisar desde o título, não se aparta de uma construtividade. Os jatos gráficos, as linhas instantâneas que se formam sob as inervações (em compasso com Walter Benjamin lendo cidade e cinema, conjuntamente) do cotidiano megaurbano contemporâneo, vibram no compasso de uma tópica abrangente, pluralmente pulsante para novas formas de vida.
O livro se torna maquete – diz na apresentação Simone Homem de Mello. É isso: livro e o lugar público da cidade estão em estreita consonância. Projetam inscrições, grafites, gráficos de uma outra ambiência, uma neoecologia de corpos e mentes (não apenas da Natureza, tomada como substrato superior de uma luta ambiental). No andamento das novas disposições humanas e culturais, o livro de poesia soa como uma caderneta de notas em que se projeta um desígnio interessado de coisas capazes de potencializar a continuidade de existência, escrita e história coletiva. Uma cidade potente e pluralizada (o livro se alinha a tal busca).
No que se refere ao eu, personificado na figura “Mauricio” mencionada no livro, ganha um contorno nítido enquanto habitante da cidade. Seu background– como se lê na seção “Musical” – é apreendido ao lado do pai, um taxista (um trabalhador do trânsito, do transporte). Desde o princípio até o ponto de culminação do ativismo na atualidade – Política da Vida Pedestre –, a marcação do “eu” em Caderneta...tanto se expande – a diluir os dados da pessoalidade – quanto se firma no poder de dizer a primeira pessoa para fora de um tratamento lírico. Dentro de uma pauta pontuada por um programa multiplicador de forças tanto poéticas quanto políticas de atuação é que o traço subjetivo se configura. Inapartável, pois, de situacionismo, cinema dos corpos em dança, arquitetura, ecofilosofia (em plena sintonia com Guattari), tecnologia, arte-cidade (confluente com as proposições intrigantes de Nelson Brissac), antropologia urbana, grafite, autonomia política (um veio producente da filosofia hoje).
Aqui o link para a página do livro no site da editora: Cadernete-Maquete