A gula
Frente ao espelho, ante ele, dentes amarelos à mostra,
veias rubras ao rosto – como um jambo podre,
trago a vida e a morte, poemas ditos em voz alta
como formigas que atravessam o açúcar – mergulho sombrio
sobre o gosto do infame pecado da gula, algumas falam entre si
“neste verão não faltará à doçura”, e assim dizia também “não me
faltaram os poemas”,
vestia-me de outros pecados, cansado de minhas roupas sujas.
Minha respiração é uma invasão de grilos, voz é um atacar de cabas
enfurecidas, emito de dentro de mim poemas, nunca são escritos
no papel, aves miúdas com pitiu de peixe,
escrito enquanto vegetava mais uma vida inoportuna e dizimada,
meus capins crescem sobre o dorso do osso que forma minha língua
– neste quintal de tempo, sombra das árvores que envolvem minha mente.
Todos nós
A arquitetura encontrada na cozinha de minha casa
lembra um pouco o movimento do corpo de um caramujo
lenha da mata próxima, fogão de barro, tirado do igarapé que corta
a coluna principal de nosso sustento, mesa de pernas tortas
sem brilho, sem mármore, sem a tinta que colori a profundidade
que é a alma de minha mãe, teias de aranha nas paredes e teto,
telhas de um passado tão distante, vindas de uma Abaete que desconheço.
Sentados todos as vésperas dos ventos mórbidos, meu pai vinha com suas
redes de pesca envolvida mutuamente em seus olhos – peixes mergulhavam por todo o piso da casa, era hora de cortar os temperos – chicória que recendia
toda carne branca do peixe,
minha mãe tardava em suas palavras, eram poucas, impressão azulada,
olhos miúdos – catam do leme do barco musgo para rebocar as lacunas abertas,
sempre, o sempre era nossa matemática, nossa língua, identidade apresentada
as questões oficiais, podiam ouvir de todos nós – aquela mamãe, sim aquela ladainha, sim que falava da mulher que virará panela.
Galhos de jambeiro
Os galhos dos jambeiros invadem minha casa – manto florido, o rosado
das lagrimas, não quero ir muito ao seu pé, suas raízes crepitam o dilacerável
dos olhos, são pontos de luz vindo de passados antes presentes
a divisão do pão sobre a mesa farta de cotovelos que furavam suas almas,
mãos que percorre a gordura sobre a mesma mesa, deixado pela carne sebenta
das entrelinhas – campi e céu, já cozinhavam a madeira cheirando a seiva,
não podia deitar-se sobre a noite, ela ainda não era solida como hoje – um soco
que rasga minha pele, expondo meu fraco sangue, olhos esses galhos, tomam
lugar que antes era de minha mãe, suas folhas querem reproduzir a voz dela
sustendo de tudo é como galhos de jambeiro, podre, fraco, pau que nunca vira
madeira, não adianta sobre eles sustentar-se, tombam-se telhas de barro,
quebram-se os copos de vidros, linha ilusória na cozinha, no fogo que
espera a lenha, chama que apaga tudo
é tudo agonia
agonia
agonia
agonia
mãos que arrastam os cabelos, olhos que não fecham-se, palavras que nunca
saem da boca.
Janela
Como um punhado de barro seco te abro, vejo já a infância carregada no teu dorso,
a escuridão cresce diante dos meus olhos – já é final tarde
papai entra pela porta da cozinha com uma juntada de peixes da maré – terçadinho, cachorrinho do padre, tamatá
corro ao quintal, pego o limão que dará de sua acidez a aridez ao peixe quando já doce na minha boca matará os profundos lamentos abissais que cantam ladainhas dentro de mim, todos caminham para suas portas e eu a janela, quero ver pássaros e mortos indo para seus galhos de sombra onde passaram a noite
carregando em seus peitos frutas que antes nasciam em suas asas,
te abro, preciso que ver, abro porque por te fechas, me abro.
a escuridão cresce diante dos meus olhos – já é final tarde
papai entra pela porta da cozinha com uma juntada de peixes da maré – terçadinho, cachorrinho do padre, tamatá
corro ao quintal, pego o limão que dará de sua acidez a aridez ao peixe quando já doce na minha boca matará os profundos lamentos abissais que cantam ladainhas dentro de mim, todos caminham para suas portas e eu a janela, quero ver pássaros e mortos indo para seus galhos de sombra onde passaram a noite
carregando em seus peitos frutas que antes nasciam em suas asas,
te abro, preciso que ver, abro porque por te fechas, me abro.
Falaram-me a árvore donde nasce o barro do início de tudo, que suas cores
são como sorte de tataíras em plano pouso no pulso, vi nela meus irmão
feitos de barros, caras amarela-branca-argila-escura
escuridão é o acidente dos meus passos, poetas aprendem a acidentar-se
logo que nascem, faca ao colo do útero – poemas inscritos juntos a formação
barrosa, abro a janela, quero ver – bichos e mortos pássaros e vivos.
Marcos Samuel Costa da Conceição nasceu com o rio praticamente debaixo dos braços, é filho, neto e bisneto de pescadores, cresceu ouvindo muitas estórias e mitos. Aprendeu a amar as dimensões dos rios, mas acima de tudo aprendeu a fala dos rios – o silêncio –, seus primeiros poemas sugiram tão natural como os sonhos e dos medos da vida. Viveu durante 20 anos em Ponta de Pedras uma pequena cidade do Estado do Pará, e atualmente mora em Belém. Autor de Sentimentos de um século 21 (Multifoco Editora, 2014), e Titulado amor (editora Literacidade, 2014), Uma semana de poesia (Editora Penalux)e em coautoria Interpoética (Big Times editora 2015).