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Traços - Ricardo Lindenberg

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Ilustração: Anna Volobueva


Suas lagrimas desfazem a tinta da caneta, a poeira sobre o papel, palavras passadas, elas volteavam desde à mesa. O sal se junta à brisa lá fora. Nas garrafas as velas não mais iluminam, breve decoração de um passado desconhecido. Ali estava você. Estes traços... aqueles traços, antigos traços.

O vagão envelhecido fede. O trajeto até Moscou agora é passado, a ultima parada; uma pequena cidade na fronteira. O odor do metal queimado, sempre o mesmo.... odor.....metal.... queimado. Você esfrega seus dedos enrugados contra a sua pele doce, promiscuidade epidérmica. Os reflexos no vidro testemunham: seus cabelos agora tornam-se brancos, quebradiços, envelhecidos. Estão longos, mas brancos, grisalhos, cansados, empoeirados, como os trilhos desta estação feia, fétida, abafada.

Os traços negros sobre a pele branca e doce. Você procura apaga-los com seus dedos finos, secos, longos. Ela dizia querer ama-lo. O amor é uma tentativa, um risco, uma decisão racional. Você pressiona ainda mais forte, um tom roseado aparece entre os desenhos, você percebe que a tintura sobre seus cabelos esta cada dia mais fraca. Os dedos fortes insistem em pressionar a pele, o rosa é agora vermelho, amanhã, roxo. Ela dizia querer ama-lo. Elas não costumam saber o que dizem. Os cabelos brancos entre os negros do nascimento. As freadas bruscas, tradição local, impõem o ritmo siderúrgico deste país ao leste, demasiadamente ao leste... Cada vez mais ao leste, apesar destas “revoluções”. Ela gostaria de ama-lo. Você busca acreditar ao tocar insistentemente nos fios brancos, conta-os, eles se multiplicam a cada dia.


Seus lábios, a saliva que escorre entre seus seios, as marcas constantes. Constante também é o toque, por toda sua pele, as marcas destas insistentes aproximações. O cansaço da matéria prima sobre a nitidez dos pensamentos, a razão se deixa embalar, o trem já partiu faz tempo. Ela repete, sob a influência dos espíritos etílicos, querer ama-lo. Os seus dizeres se perdem em meio ao trajeto, os cabelos brancos, os dedos fatigados e os traços fiéis sobre todas estas superfícies compartilhadas, divididas, transpiradas – seu odor de besta selvagem – permanecem. Do amor, ela não devia dizer nada.



Ricardo Lindenberg nasceu em São Paulo no ano de 1985. Bacharel e Mestre em Filosofia e Letras Clássicas pela Universidade de Paris, mora atualmente em Kiev (Ucrânia) onde ensina filosofia no Liceu Frances de Kiev. Atua igualmente como professor de língua portuguesa na Universidade Nacional de Kiev (Taras Shevchenko). Tendo morado em diferentes países, Estados-Unidos, França e Ucrânia, tem um grande interesse pelas línguas e pela possibilidade de fazer com que as culturas dialoguem. 

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