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Canibais versus vegetarianos no Don Juan de Lord Byron - nova tradução de Lucas Zaparolli

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O Naufrágio de Don Juan (Delacroix)




Canibais versus vegetarianos no Don Juan de Lord Byron

Logo após o prenúncio do naufrágio de Don Juan, como publiquei aqui na Mallarmargens já faz um tempo


o barco que carrega o herói da história realmente naufraga, e morrem mais de duzentas pessoas, restando apenas Juan e mais uns trinta companheiros de infortúnio em um bote a céu aberto com mais nenhuma comida.

Uma hora a fome aperta sem provisões e sem previsões de; e o que, enfim, haveria para comer?
A teoria de Byron é que o homem é um ser carnívoro. Longas noites discutiram a este respeito Lord Byron e o poeta Percy Shelley, contumaz defensor do vegetarianismo, crente de que os princípios de igualdade deveriam abranger também os animais.

De uma dessas conversas, inclusive, surgiu a ideia do monstro de Mary Shelley, o famoso Frankstein, ser vegetariano.

Curiosamente, algum tempo depois Shelley morreria afogado após o naufrágio de seu barco também nomeado “Don Juan”, e Byron cremá-lo-ia numa espécie de ritual pagão.

Nos versos que seguem, Juan cede a carta que sua primeira amada, Donna Júlia, lhe escreveu, para que possa ser feito o jogo com o qual se decidirá quem vai morrer para servir de comida aos demais. É este o exato momento de extrema tensão flagrado na famosa pintura de Delacroix, “O naufrágio de Don Juan”.

Byron, contrariando os preceitos Românticos vigentes à época, despreza o poder da Imaginação sobre a poesia. Para isso, prenunciando determinados preceitos Realistas, constrói sua narrativa a partir de diversos recortes de narrativas de desastres reais, gênero muito rentável à época, como o gênero de narrativas de viagens. Para isso, grande parte da sua descrição se apoia no livro Shipwrecks and Disasters at Sea, de 1812.

Juan viajava acompanhado de seu infortunado tutor, licenciado Predillo, que lhe havia seguido como um “Sancho Pança”. É obviamente que a “sorte” cairia sobre seu caro mestre. E aí, ele vai comer seu tutor? vai encher a pança com seu Sancho Pança? ou Don Juan, o herói desta história malfadada, abster-se-á da fraqueza da carne?

A tradução, por sua vez, buscou dar conta de diversos fatores, à medida do impossível, e, quer pelo aspecto da busca pela transmissão de grande parte do sentido, quer pela tentativa de traduzir o ritmo iâmbico dos pentâmetros originais algumas vezes em decassílabos com tônicas nas sílabas 2ª., 4ª., 6ª., 8ª. e 10ª., quer ainda pela problemática da tradução das rimas, o leitor atento não deixará nada disso passar em branco.

***

Canto II

Stanza

LXXII.
Dia sete, sem vento – arde o sol, que empelota
E torra, e jazem na estagnada aragem
Como carcaça; esp’rança não se nota,
Salvo à brisa que não vem: com selvagem
Ar miram-se uns aos outros – tudo esgota-
Do, água, e vinho, e comida, – e vê-se a imagem
Do anseio canibal que ali se erguera
(Mas ninguém fala) em seus olhos de fera.

LXXIII.
Daí eis que se murmura ao outro, que se
Murmura a um, e assim, rodando, surge
Burburinho mais ríspido que cresce
Num ruído atroz que em desespero ruge;
E quando ao vir-se a ideia alheia vê-se
A sua própria abafada, aí ela vem à luz: e
Então falam de porções de carne e sangue, e o
Camarada que iria morrer pro rango.

LXXIV.
Mas antes, neste dia compartilharam
Coifas de couro, e o que das botas fica;
Olhando em volta, se desesperaram,
Ninguém ao sacrifício se auto indica;
Irão tirar na sorte, e preparam-
-Na de algo que em chocar a Musa implica –
Sem papel, ou algo melhor, na bulha
E à força, usam a carta pra Juan de Júlia.

LXXV.
Fez-se e marcou-se o jogo, e se entregou
Em tácito horror, sua distribuição
Amansou até a cruel fome que obrigou,
Urubu de Prometeu, a esta podridão;
Ninguém particular que a planejou,
E a Natura os roeu a esta situação,
Daí que ser neutro não se permitiu –
E o azar no tutor sem sorte de Juan caiu.

LXXVI.
Só desejou sangrar até a morte:
Tinha instrumento o médico, e em conforto
Baixou a veia de Pedrillo, de sorte
Que não se viu quando ele esteve morto.
Morreu igual nasceu, na fé cristã forte,
Como muitos na crença nata absorto,
E primeiro beija a cruz, e num impulso
Então estende a jugular e o pulso.

LXXVII.
O cirurgião, sem outro pagamento,
Que iria escolher primeiro assim dispôs;
Mas estando sedento no momento,
Preferiu mais é gole da veia, pois:
Repartiu-se algo, e algo foi mar adentro,
Cérebro e entranha deram festa a dois
Tubarões, que iam da esteira da onda ao trilho –
E a galera jantou o pobre Pedrillo.

LXXVIII.
Os marujos comeram ele, fora
Três ou quatro, não fãs de almoço animal;
Junto a estes, Juan, que, recusando outrora
O spaniel que seu fora, também mal
Aumentara o apetite seu agora;
Nem seria mesmo esperado afinal,
Que ainda na extremidade do horror,
Fizesse pasto do mestre e pastor.

LXXIX.
Foi melhor não ter feito; pois, de fato,
A consequência foi hórrida ao extremo;
Já que os que foram mais ávidos no ato,
Caem em doido furor – Deus! quão blasfemos!
Rolando em convulsões de estranho trato,
Bebendo água do mar como fonte, e mor-
Dendo, irando-se, urrando, maldizendo, e,
Aos risos de hiena, morrendo em frenesi.

LXXX.
Seu número baixou com esta pena,
E há uns magros de dar pena, pelos Céus;
Uns perdem a memória, e são até, na
Real, mais felizes que o que os males vê; e os
Outros pensam em mais dissecção apenas,
Não ouvindo o aviso dado pelos seus
Que morreram, na insana aflição vista,
Com o apetite à usança tão sinistra.

***




Canto II

Stanza

LXXII.
The seventh day, and no wind—the burning sun
Blistered and scorched, and, stagnant on the sea,
They lay like carcasses; and hope was none,
Save in the breeze that came not: savagely
They glared upon each other—all was done,
Water, and wine, and food,—and you might see
The longings of the cannibal arise
(Although they spoke not) in their wolfish eyes.

LXXIII.
At length one whispered his companion, who
Whispered another, and thus it went round,
And then into a hoarser murmur grew,
An ominous, and wild, and desperate sound;
And when his comrade's thought each sufferer knew,
'T was but his own, suppressed till now, he found:
And out they spoke of lots for flesh and blood,
And who should die to be his fellow's food.

LXXIV.
But ere they came to this, they that day shared
Some leathern caps, and what remained of shoes;
And then they looked around them, and despaired,
And none to be the sacrifice would choose;
At length the lots were torn up, and prepared,
But of materials that must shock the Muse—
Having no paper, for the want of better,
They took by force from Juan Julia's letter.

LXXV.
The lots were made, and marked, and mixed, and handed,
In silent horror, and their distribution
Lulled even the savage hunger which demanded,
Like the Promethean vulture, this pollution;
None in particular had sought or planned it,
'T was Nature gnawed them to this resolution,
By which none were permitted to be neuter—
And the lot fell on Juan's luckless tutor.

LXXVI.
He but requested to be bled to death:
The surgeon had his instruments, and bled
Pedrillo, and so gently ebbed his breath,
You hardly could perceive when he was dead.
He died as born, a Catholic in faith,
Like most in the belief in which they're bred,
And first a little crucifix he kissed,
And then held out his jugular and wrist.

LXXVII.
The surgeon, as there was no other fee,
Had his first choice of morsels for his pains;
But being thirstiest at the moment, he
Preferred a draught from the fast-flowing veins:
Part was divided, part thrown in the sea,
And such things as the entrails and the brains
Regaled two sharks, who followed o'er the billow—
The sailors ate the rest of poor Pedrillo.

LXXVIII.
The sailors ate him, all save three or four,
Who were not quite so fond of animal food;
To these was added Juan, who, before
Refusing his own spaniel, hardly could
Feel now his appetite increased much more;
'T was not to be expected that he should,
Even in extremity of their disaster,
Dine with them on his pastor and his master.

LXXIX.
'T was better that he did not; for, in fact,
The consequence was awful in the extreme;
For they, who were most ravenous in the act,
Went raging mad—Lord! how they did blaspheme!
And foam, and roll, with strange convulsions racked,
Drinking salt-water like a mountain-stream,
Tearing, and grinning, howling, screeching, swearing,
And, with hyæna-laughter, died despairing.

LXXX.
Their numbers were much thinned by this infliction,
And all the rest were thin enough, Heaven knows;
And some of them had lost their recollection,
Happier than they who still perceived their woes;
But others pondered on a new dissection,
As if not warned sufficiently by those
Who had already perished, suffering madly,
For having used their appetites so sadly.

***


Lucas Zaparolli de Agustinié formado em latim pela USP e sobrevive em SP, onde atualmente cursa pós-graduação em Estudos da Tradução com a tradução integral de Don Juan de Byron. Seu primeiro livro inédito de poesias próprias, Pelo Andar do Dia, já recebeu diversos prêmios, sendo um deles o 3° lugar no concurso da UBE de 2013, recebido na ABL. Em 2014 publicou independentemente as Obras Completas de Delmira Agustini. Atualmente envereda pelos gêneros da text-sound composition e do vídeo-poema. Também mantém o blog: www.quemnuncafezpoesia.blogspot.com.

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